quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Senhores ouvintes

Nesta crônica, relembro os antigos serviços de alto-falantes, seus locutores, suas gafes e os causos pitorescos, como também os famosos dramas de Seu Iozinho e seus artistas.

Dia desses, movido certamente pela saudade, flagrei-me a rememorar os serviços de alto-falantes que muitas cidadezinhas do interior ainda aprazem em tê-los, e que Santa Maria da Vitória apenas confirma a regra, o que resultou na escrita desta crônica reminiscente. 

Quando os sinais de televisão não haviam chegado àquele distante parnaso, quando nem se sonhava com emissora local de rádio, as programações daqueles veículos de comunicação eram levados ao ar em horários predeterminados, normalmente, às 10 e às 4 horas da tarde. 

Não estão tão distantes assim esses acontecimentos. Há mais ou menos 40 anos, eles ainda proliferavam. Ficavam em lugares altos onde os sons emitidos pudessem conciliar maior raio de abrangência e audição satisfatória. Em Santa Maria da Vitória, esses veículos eram instalados no Alto do Menino Deus e nas Praças do Jacaré e da Bandeira.

A puxar um pouco pela memória, quem não se lembra de Jason Queiroz, de esmerado português, com seu vozeirão inconfundível, a informar a hora certa com a precisão do mais moderno digital, muito embora o relógio que ostentava era mecânico, tradicional, certamente um vistoso Megalo:

Câmara de Vereadores: Jason Queiroz, ministro Rangel Reis, vereador Aldegundes e o prefeito Tito Soares.
Foto: Reprodução / Revista Barreiras em Foco, n. 20, ano 1978, p. 34. Acervo: Novais Neto
Jason Queiroz.
Acervo: Idalmar Queiroz.

— Na cidade que mais cresce no Sudoeste [isso mesmo] baiano, são precisamente: 17 horas, 59 minutos e 59 segundos. Ouviremos, agora, a Hora do Ângelo – e ouvia-se então em todos os cantos da cidade a belíssima Ave Maria, de Franz Schubert, pelo magistral trompete de Al Korvin. 

Outro personagem inimitável na comunicação santa-mariense é o autodidata Flávio Bonfim que, com sua voz clara, cadenciada e firme, assim começava seus programas diários: 

— Com este prefixo musical [Tema de Lara], vai ao ar o Serviço de Alto-Falante a Voz de Santa Maria da Vitória, numa programação de músicas e gravações selecionadas. Senhores ouvintes, bom dia! 

Ou ainda, em edição extraordinária, para dar nota fúnebre que, invariavelmente, terminava com este agradecimento: 

— A família enlutada agradece a todos por este ato de caridade e fé cristã! 


Banda The Jovens: Julinho, Flávio, Vadu, Wilson e Rui Lisboa. Acervo: Iolanda Lisboa.

Vale lembrar, também, o Serviço de Alto-Falante Brasil Central instalado no Alto da Igrejinha, com estúdio na casa pertencente ao famoso rábula Wilson Afonso, cuja locutora, dona Zazá (Nilza Bastos Brandão) anunciava – com originalíssima pronúncia – a música do famoso Ídolo Negro que morreu no ano de 1973, aos 27 anos, em acidente automobilístico: 

Seu Abel e Dona Zazá. Acervo: Sérgio Braga
— Ouviremos, agora, com Evaldo Braga, Surria, Surria. 

Além do alto-falante de Dona Zazá, havia mais dois: o de Jessé, no Clube 2 de Julho, e outro na Praça da Bandeira que, à tardinha, seus locutores, entre eles, João Nogueira, Terencinho e Flávio, anunciavam seus filmes: 

— Este é o Serviço de Alto-Falante a Voz do Cine União anunciando para hoje, às 20 horas e 45 minutos, uma grandiosa película cinematográfica, em technicolor, intitulada: Django Volta para Matar, com Hugo Blanco, John Clark e Gustavo Rojo. 

Existiam, ademais, os serviços de alto-falantes volantes, geralmente, utilizados para anunciar a chegada de alguma personalidade política, um artista ou convidar o público para assistir aos famosos dramas de Seu Iozinho (Raimundo Martins da Costa), expoente maior na dramaturgia da nossa região, que assim anunciava suas peças: 

Iozinho. Foto: Reprodução/Facebook
— Este é Serviço de Alto-Falante Volante anunciando para hoje, às 20 horas e 30 minutos, no Clube 2 de Julho, uma grandiosa peça teatral intitulada: Aliança Partida ou A Cruz de Magda. 

O que mais me despertava atenção em seus dramas, muito bem encenados e de bom conteúdo, era a duplicidade de títulos, como, por exemplo: As Mágoas de Jacó ou O Filho da Velhice; O Anjo Protetor ou Os Amores de Pilatos etc. 

Para atores e atrizes é indispensável um registro especial. Eis alguns nomes de que me lembro (ou que me lembraram): o próprio Iozinho Costa e os filhos Javan Carlos, Flamarion Antônio, Diana, Ítalo Ipojucan e Wedem de Sordi; Cotinha Ferreira e os filhos Anatole e Júnior; Lourdes Ferreira e a filha Maria Raimunda; os irmãos Carlúcio e Vandinho de Agostinho Relojoeiro; Kamezinha; Esmeralda de Tinhô Queiroz; Jorge de Zefina Borba; Dinalva de Milton Saruê; Nenê de Tutu Ferreira; Binha de Emílio Leão; Nalvinha de Rosi Rocha; Jeová de Abílio, Maria de Alfredo Bahia e o sonoplasta Antônio Augusto Santos (Tõi Rosinha). 

Encenação de uma de suas peças teatrais, os famosos dramas. Acervo: Jorge Queiroz.
Aliança Partida ou A Cruz de Magda. Atores: Júnior, Iozinho, Jeová (?), Maria e Anatole. Acervo: Anatole.
De volta aos serviços de alto-falantes, é bom registrar algumas gafes memoráveis, que eram inevitáveis, afinal, os programas aconteciam ao vivo, inclusive os comerciais. Vamos lembrar algumas, sem com isso desmerecer ou zombar daqueles que as cometeram, é bom deixar claro. 

Neste rol de palavras impensadas, atribui-se a certo locutor do Cine União que, sentindo-se prejudicado na veiculação de seus anúncios, porque um concorrente do Cine Rex, no Clube 2 de Julho, invadiu seu horário indevidamente. Ele, então, “entrou no ar” e, com veemência e autoridade, ordenou: 

— Atenção! Muita atenção, Jessé! Atenção! Muita atenção, Jessé, tira o seu qu’eu quero botar o meu!  

Outro locutor que detinha programa semelhante em São Félix do Coribe, ao anunciar os pedidos musicais, à semelhança dos parques de diversão, deu esta risível nota (assim me contaram!): 

— Atenção! Muita atenção O. X. Atenção! Muita atenção O. X, ouça esta gravação que Felícia lhe oferece como prova de muito amor e carinho, com Roberto Carlos, Te amo, te amo, te amo. 

No meio da execução da música, o mesmo locutor baixou o volume do som, manteve-o como fundo musical, e fez esta hilária inconfidência: 

— Meus caros ouvintes, eu, como não gosto de segredo, OX quer dizer Ontõi Xofer. 

Contam também que outro locutor de uma cidade vizinha à Santa Maria da Vitória, num idêntico programa de oferecimentos musicais, solta esta pérola: 

— Atenção, muita atenção, Diocleciano, mais conhecido por Dió. Atenção, muita atenção Diocleciano, mais conhecido por Dió, ouça a próxima gravação que Georgina lhe oferece como prova de muito amor e consideração, com Gigliola Cinquenta, Dió, como te amo. 

Não faz mal lembrar que o locutor se referia à cantora e atriz italiana de enorme sucesso nas décadas de 1960 e 1970, Gigliola Cinquetti, e não Cinquenta. E a música era Dio come ti amo, também nome do filme estrelado pela linda, competente e apaixonante cantora. 

Já outro locutor, ao dar uma nota fúnebre e convidar a população para acompanhar o féretro, sem atentar para o que estava escrito, anuncia “morte antecipada” de alguém, ocorrida em outra cidade. 

— A família enlutada do senhor Jayme cumpre o doloroso dever de comunicar aos parentes, amigos e ao povo em geral, o seu falecimento ocorrido em Brasília e, ao mesmo tempo, convida a todos para o seu sepultamento no Cemitério Santa Verônica, tão logo chegue o “enfermo”. 

Mais recentemente, conta-se também que certo disk jockey, ao dar a hora certa para seus ouvintes, resolveu contrariar a semântica: 

— Rádio Rio Corrente, 810 quilo-Hertz de potência, informando a hora certa: são mais ou menos 11 horas, em Santa Maria da Vitória, Bahia.

Quase todos os locutores de serviços de alto-falantes santa-marienses, ao entrarem no ar ou ao saírem do ar com seus programas diários, invariavelmente, transformavam prefixo e sufixo, de antônimos que são, em sinônimos. Usavam indistintamente “prefixo musical” tanto para entrarem no ar quanto para saírem, quando, para saírem, deveriam usar “sufixo musical”. 

Vale registrar que não há, aqui, qualquer intenção de criticar aquele ou aqueloutro que, por ventura, julgar-se identificado. As gafes são percalços da profissão, ossos do ofício que, com esta crônica, desejo, sim, homenagear os profissionais da comunicação, jamais fazer qualquer tipo de chacota. 

Tudo isso são gratas lembranças e registros indeléveis, porque, em dias atuais, na era de potentes alto-falantes e sofisticadas aparelhagens sonoras, estes serviços de comunicação evoluíram para os barulhentos carros de som, que anunciam eventos ou propagandeiam produtos com o volume lá nas alturas, a deixar qualquer um atordoado, no limiar de um ataque de nervos.

Referências

Ave Maria (Franz Schubert)

Tema de Lara (Theme From Lara - Al Korvin)

Dio Come Te Amo (Gigliola Cinquetti)

Sorria, sorria (Evaldo Braga)
https://www.youtube.com/watch?v=CN5oyowzCtk

25 comentários:

  1. Parabéns Grande Poeta! Há muito seu público merecia esse espelho da sua alma. Grande honra poder contar com suas obras dessa forma. Acessar cultura de qualidade é bom demais. Deus abençoe sua arte.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom texto. Me fez viajar lara aquela época onde a arte era viva por aqui. Parabéns!!

    ResponderExcluir
  3. Salve mestre! Blog da memória de santa Maria das Vitórias.

    ResponderExcluir
  4. Grandes serviços foram prestados por estes profissionais, de campanhas de vacinação,visitas de ilustres,acidentes etc.
    Muito louvável o elogio a todos eles.

    ResponderExcluir
  5. Parabéns poeta pelo excelente trabalho.Lembro-me de todos esses relatos.Saudades!!!!

    ResponderExcluir
  6. Primo-poeta, boa tarde. Sem dúvidas foi muito bom ler sua crônica. Recordei da minha juventude e rápida passagem por SAMAVI (1969/1970), época em que conclui o Ginásio numa escola próxima a casa da minha tia Eujácia. Muitas saudades daqueles tempos. Nos finais de semana, a noitinha, uma "voltinha" pelo Jardim Jacaré, enquanto aguardava a chegada da namorada. Ouvia-se o programa do Flávio que anunciava o filme da noite e algumas músicas inesquecíveis. Me lembro de uma canção, acredito que de origem italiana "El arca de Noé, Jimmy Fontana" tocada todas as noites no final da comunicação. Bons tempos.Vou aguardar uma próxima crônica sua que trate sobre aquela banda que movimentou e alegrou SAMAVI em muitos finais de semana, que faziam parte os músicos Nery(Banco do Brasil), Tonho de Altamiro, Altamiro e Flávio. Não me recordo o nome da banda. Já procurei pela internet alguma notícia sobre e não encontrei. Quem sabe o estudioso primo venha nos brindar com esse assunto. Parabéns. Me sinto honrado em ser parente de um artista como você. Abraço de todos daqui em Mato Grosso. Adenil Claro

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, primo, por tão carinhosas e incentivadoras palavras.
      A banda de Nery era Os Magnatas, depois veio uma de Tõe Mora, a Banda Apocalipson. Lembrou agora? Um abraço.

      Excluir
    2. Era essa música, primo?
      https://www.youtube.com/watch?v=H9x-6uxwvOg

      Excluir
  7. Parabéns, Novais, lembranças como estas precisam ser "reavivadas". Gostei muito desta crônica.

    ResponderExcluir
  8. Parabéns,Novais.Fatos como estes precisam ser eternizados. E sua crônica cumpre este papel.

    ResponderExcluir
  9. Parabéns grande amigo e Poeta, quantas saudades, ficarei esperando novidades dos velhos e bons tempos da nossa Cidade Riso, como era chamada Santa Maria da Vitória, tão abandonada!!!

    ResponderExcluir
  10. Novais Neto, somente você mesmo para resgatar em nossa memória esta linda história. Essa marca contundente do nosso passado. Eu quando menino lembro-me muito bem de parte desta história, Me lembro da difusora com Flávio Bomfim. Me lembro da hora do Ângelo que acontecia as 18h. Eu brincava muito no Alto da Igrejinha e ficávamos sempre próximos aos alto falantes que ali existia. Você conseguiu essas fotos históricas do seu Iozinho, marcas registradas da nossa história. Parabéns você é um autêntico amante da nossa cidade. Rayfranbahia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, meu amigo. Você lembrou bem como falávamos: difusora de Flávio. Gostei demais. Grande abraço.

      Excluir
  11. Parabéns Novais, por essa crônica muito bem feita, que fez parte da nossa infância, relembrando esse meio de comunicação que tanto nos alegrava.
    Sou seu fã!
    Abraço,

    ResponderExcluir

Quem sou

Crônica para os meus Sessenta e Sete

Dia 24 de outubro último, meu aniversário, Justino Cosme gravou dois vídeos meus alusivos à data, nos quais declamo duas trovas à margem do ...