domingo, 14 de janeiro de 2024

Ubirajara, o coronel mnemônico setaco

Quando o conheci, ele ainda era meninote de seus 12 anos de idade, filho de seu Clero e dona Mima, vindo de Itapetinga, a carregar o nome de um guerreiro: São Jorge. Era colega da minha irmã Nena, do primeiro ano ginasial, no Centro Educacional Santamariense (sic), que nós insistíamos chamar Ginásio Comercial. Eu cursava, à época, o segundo ano na mesma escola, que ficava pertinho da casa de seus pais, no mesmo logradouro, Rua Coronel Clemente de Araújo Castro, nome de um ex-prefeito.

Jorge ou Bira, já que seu nome é Jorge Ubirajara Pedreira, vira e mexe, estava na minha sala a conversar com as irmãs Maria Cristina e Maria Cláudia Lisboa Borba, amigas e vizinhas dele. De tanto isso acontecer, ele até aparece em uma foto da turma, de 1974, por ocasião de festejos juninos. Ele está indicado por uma seta e eu, a usar um chapeu de vaqueiro, amarelo.

Alunos do Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória. 1974.
Foi cursando o ginasial que Jorge Ubirajara, dono de nariz aquilino, irmão gêmeo do meu, recebeu o sugestivo apelido do personagem infantil Topo Gigio, simplificado pelos colegas, virou apenas Topa. Topa de Seu Clero e Dona Mima.

Além de sempre nos encontrarmos em sala de aula, ainda havia as aulas de Educação Física no campão, no então Estádio Wilson Barros, que depois foi renominado para Turíbio de Oliveira e, acompanhando o modismo futebolístico, virou Turibão, tão somente. Quando não era neste local, era num campinho que ficava na saída para Correntina, nas imediações do atual Centro de Abastecimento.

Vez ou outra, as aulas de ginástica eram realizadas no pátio do colégio, ministradas pelo genial professor de Matemática, Tércio Santana, Tutes, também meio-campista do Monte Castelo e da seleção santa-mariense. Nesta época, a escola não tinha quadra e as vezes tínhamos que ir para a quadra de Chiquinho, Francisco Alves da Silva, ex-prefeito da cidade, localizada nas proximidades da atual sede do Juizado de Pequenas Causas.

Isso não era bom, vivíamos que nem cigano: um dia num lugar, outro dia em outro, e muitos colegas acabavam perdendo aula. Não sei quem foi, mas alguém teve a ideia de nós mesmos ajudarmos na construção de uma quadra no colégio. E outro sugeriu que, nos dias de aula, levássemos pedra para começar a obra.

A ideia, que parecia boa, virou problema. É que ninguém, certamente, traria pedra de casa, iria, sim, catando pela rua. Muitos fizeram isso, outros, entretanto, viram uma construção por perto e levaram todas as pedras que podiam ser carregadas. No mesmo dia, o proprietário foi reclamar com a Direção do colégio, e a então diretora, dona Nena, nos fez devolver todas, até mesmo as encontradas pelo caminho. No entanto, apesar desse hilário acontecimento, a quadra virou realidade.

Ninguém queria mais perder aula de Educação Física. Por outro lado, se Tutes não pudesse ir, o italiano Ascenzo Venditti, Padre Enzo, marcava presença e nos ensinava exercícios respiratórios e de alongamentos, coisas nunca vistas por nós. Foram bons tempos de jogos de futebol de salão, ginástica e basquetebol. Tutes, nosso educador físico, montou dois times de basquete: um da própria escola e outro do Colégio Gonçalves Ledo, que rivalizavam, além de alguns times de futsal.

Topa fazia parte do time de basquete, e eu também. Nos treinos, tinha que ter uma bola só para ele, era fominha demais e “delegado”. Gostava de tentar cestas miraculosas que às vezes davam certo. Quando não davam, tomava bronca dos companheiros, mas tudo terminava em riso e gozação.

Há, dessa época, um acontecimento que não chegou a ser trágico e, hoje, tornou-se risível. Todas as manhãs das segundas, quartas e sextas, às 5 horas, enquanto esperávamos pelo professor Tutes, na frente do colégio, sempre aparecia algum colega distribuído pão quentinho. Todo mundo comia, nem que fosse um taquinho, inclusive Topa. E ninguém nem queria saber a origem do milenar alimento.

Dias depois, veio a reclamação de Tutes. É que alguém estava pegando os sacos de pães que o entregador deixava nas janelas das casas, como era hábito, inclusive da janela de Seu Clero, pai de Jorge. E aí veio o boato assustador: Seu Clero estava à espera do espertinho com uma espingarda de sal grosso. Desse dia em diante, alguns mudaram de calçada e outros mudaram até de rua.

Durante todo o curso ginasial foi isso. Eu continuei o segundo grau em Santa Maria, no mesmo colégio, cursando Técnico em Contabilidade. No ano de 1978, mês de agosto, mudei-me para Salvador, indo morar na recém-fundada Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória (Caes), localizada na Av. Joana Angélica, em frente ao Sesc. Topa chegou logo depois, a portar uma carta de apresentação, que foi exposta no mural da Casa pelo então presidente, o saudoso amigo Fernando Rosa Santana.

A carta era dispensada, já que cabia aos próprios estudantes, especificamente, a Direção, admitir novo morador a depender da existência de vaga, o que, naquele momento, não foi problema, mesmo já tendo a casa mais de 30 moradores secundaristas, pré-vestibulandos e universitários. Decorei a tal missiva, por gozação, e a transcrevo, a seguir, mesmo passadas mais de quatro décadas:

Reprodução da carta do Prefeito Tito Soares a Fernando Santana. 1978.
Pronto. O rapaz recomendadíssimo estava admitido, e não decepcionou nem o prefeito nem a nós, moradores da Caes, pelo contrário, só veio mesmo a somar. E muito.

No ano seguinte, 1979, houve eleições para escolha da nova Direção da Casa. Tito Gardel do Prado e eu fomos eleitos para presidente e vice-presidente, respectivamente. O primeiro, no entanto, aprovado que foi em concurso do Banco do Brasil, retornou a Santa Maria, e eu assumi em seu lugar. Eu também fui aprovado em concurso do Baneb (1979) e vestibular de Arquitetura (1980), na UFBA, e teria de ficar por aqui mesmo.

Não foi fácil, mas com a ajuda dos que queriam crescer na vida, dos que sonhavam com novos horizontes, as coisas foram facilitadas, inclusive por Jorge, que foi, juntamente com José Gregório, meus secretários de alimentação. Nesta ocasião, Jorge era estudante do Colégio da Polícia Militar. E dessa época, também, há um inapagável acontecimento, pelo menos para mim.

Caderno com anotações da Casa de Estudante de Santa Maria da Vitória. 1979.
Uma das vantagens em morar na Casa era que, no que se refere às disciplinas escolares, ninguém ficava com dúvida em algum assunto. Sempre havia alguém que sabia e ajudava a esclarecer. Neste grupo, no qual me incluo, além de Renan, Gregório, dentre outros, para as disciplinas Matemática, Química e Física eram as que mais nossos colegas pediam socorro.

Certa vez, véspera de uma prova de Matemática, do Colégio da Polícia Militar, cujo assunto era Trigonometria, Jorge me pediu ajuda porque não estava conseguindo memorizar, quando seno, cosseno e tangente eram positivo ou negativo nos quadrantes de um círculo trigonométrico. Ensinei-lhe direitinho, utilizando-me de um recurso mnemônico facilitador da decoreba.

— Olha, Jorge, construa um quadro com 3 colunas e 2 linhas. Em cima, coloque, nesta ordem: seno, tangente e cosseno (SeTaCo), e não na ordem como a gente aprende nas aulas — frisei bem e continuei — e, na linha de baixo, escreva os números 12, 13 e 14. E disse mais:

Círculo trigonométrico e quadro mnemônico. Elaboração: Novais Neto.
— Feita a tabela, isso significa que seno é positivo no primeiro e segundo quadrantes; tangente, no primeiro e terceiro; e cosseno, no primeiro e quarto. Nos demais quadrantes, os faltantes, eles são negativos obviamente, assim: como seno é positivo no primeiro e quarto quadrantes, é negativo no segundo e terceiro; como tangente é positivo no primeiro e quarto, é negativo no segundo e terceiro; como cosseno é positivo no primeiro e quarto, é negativo no segundo e terceiro — e finalizei as dicas mnemônicas com o tradicional “entendeu, Topa?”.

Topa saiu sorridente, dando pinotes de alegria, a parecer um meninão, e soltou a voz:

— Agora, vou matar a pau! — e foi para o quarto estudar mais. A prova seria no outro dia, na parte da manhã.

Por volta do meio-dia, do dia seguinte, ele me encontrou, agradeceu e disse:

— Matei a pau, Nó. O professor botou umas três questões do assunto.

Os dias passaram e, num deles, Jorge chegou revoltado, me xingando todo, dizendo que eu havia lhe ensinado errado, e que aquele negócio de SeCoTa estava errado, e que deu tudo ao contrário, e coisa e tal. O homem estava uma fera, coisa rara.

Tomei um susto e repeti, pausadamente, o que ele me disse:

— Se… Co… Ta, Topa? Eu lhe falei Se… Ta… Co. Esqueceu? Pirou de vez, foi? Olhe no seu caderno e veja o que está escrito. Meu Deus do céu, por isso se deu mal!

Jorge nem fez isso. Levou apenas as mãos à cabeça e saiu cabisbaixo. Quem estava presente e conhecia o assunto, não deixou de sorrir. De vez em quando, alguém, relembrando o ocorrido, lhe chamava de Secota, mas o apelido não vingou. Muitos, certamente, já esqueceram tal episódio… Menos eu.

Já como aspirante da PM baiana, nos duros anos de 1980, quando as greves eram reprimidas com toda força, num desses momentos, eu, empregado do Baneb, e Renê, primo e morador da Casa do Estudante, funcionário do Banco Econômico, encontramos Jorge a comandar a Cavalaria num desses embates no bairro do Comércio. Ele já não morava mais na residência estudantil.

Renê, sempre muito brincalhão, em tom de graça, lhe advertiu:

— Deixa quando você descer desse podói, desse pangaré feio, e for ver a gente na Casa do Estudante, cê vai ver  que é bom pra tosse. Não foi isso que nós lhe ensinamos — Jorge apenas abriu um largo sorriso, pois conhecia muito bem o bom humor e as brincadeiras de René.

O menino Jorge de Seu Clero e Dona Mina cresceu, progrediu e retornou a Santa Maria da Vitória, nossa querida Samavi, já como Capitão Ubirajara. Ficou por lá algum tempo e voltou a Salvador, porém sempre retornando em suas férias.

Novais, Jorge e Glécia Almeida. 2016.
No ano de 2016, por ocasião do aniversário de Santa Maria da Vitória, 26 de junho, encontramo-nos num evento na Câmara dos Vereadores. Eu, para receber a Medalha do Mérito Literário Osório Alves de Castro e Jehová de Carvalho, e ele, Jorge Guerreiro, para receber o Título de Cidadão Santa-Mariense. O que já era de fato, de direito, se tornou.

Finalmente, a Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, nossa inesquecível Caes, que formou advogados, historiadores, engenheiros civis e químico, educadores, administradores, analista de sistema, educador físico, geólogo, médica veterinária, agrônomo, químico analista, contador, dentre outros, tem agora seu coronel, coronel “cheio”, que atende pelo nome de Jorge Ubirajara Pedreira, para muitos. Para nós, seus amigos mais “chegados”, de infância, ele é simplesmente Coronel Topa. Agora e Sempre! [Atualmente, com méritos e honrarias, desfruta sua aposentadoria].

Praça do Jacaré: Hermes, Renan, Novais Neto e Jorge. 1980.

Em tempo:

Esta crônica foi publicada no Matutar em 16/5/2017, onde também está disponível no link: https://www.matutar.com.br/comportamento/coronel-mnemonico-setaco/. Acesso em: 14/1/2024.

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