sexta-feira, 26 de junho de 2020

Ao som dos dobrados filarmônicos

O aniversário de Santa Maria da Vitória sempre esteve associado às alvoradas da Philarmônica 6 Outubro. Por isso, neste 26 de junho, felicito-lhe: Parabéns, Santa Maria, pelos 111 anos de emancipação política e administrativa.

O dia não tardaria a amanhecer. O ocidente em poucos instantes mostrará o belo arrebol, a denunciar que o Astro-Rei está acordando. E num festejo que se repete desde as primeiras eras, o dia sorri graciosamente no mavioso canto da passarada.

Não fazia muito tempo que havia conciliado o sono, coisa que não foi difícil, depois de natural cansaço após noitada de quentões e forró nos festejos juninos na praça do nosso Jardim Jacaré, palco maior de quase todas as grandes festas e eventos santa-marienses.

De repente, um som longínquo, sideral, vindo não sei de onde, num crescendo mágico e envolvente, começa a tomar conta do meu quarto. Saltei bruscamente da cama e, em completo desalinho, corri até a porta para ver, em princípio, “a banda passar”, digo melhor, ver a filarmônica passar acompanhada por uma multidão.

Ali, pois, diante dos meus olhos sonolentos e enevoados, passava a Philarmônica 6 de Outubro em inconfundível e contagiante alvorada, a dizer a todos quantos a ouviam que Santa Maria da Vitória, naquele dia, 26 de junho de 1992, completava seu octogésimo terceiro aniversário de emancipação político-administrativa.



A Cidade Riso [outrora assim chamada] merece — bem fundo pensei — o que me deixou de olhos marejados a denunciarem grande contentamento. Ela sabe como ninguém acolher seus filhos naturais e adotivos, não importa. Pena é que, como toda mãe, por mais bondosa que seja também tem seus filhos ingratos, que a maltratam e fazem-na sofrer e chorar.



Naquele momento, sonho e realidade confundiam-se. Senti o coração pulsar mais fortemente e um gostoso arrepio abraçar gradualmente o corpo inteiro. Uma vontade incontida de acompanhar aquele séquito tomou conta de mim. E assim o fiz, como estava mesmo: rosto, camisa... todo amarrotado. Importante mesmo era saborear e deglutir suavemente a inebriante música filarmônica.

Muitos rostos conhecidos percebi. Um deles, o de Luiz Cayres, advogado e batalhador pela preservação do nosso centenário Tamarindeiro, protegia-se, bem agasalhado que estava, daquela friíssima manhã junina.

Apressei os passos, passando a ficar lado a lado com Renan de Luiz Soldado e Carminha, igualmente protegidos do frio, curtiam os dulcíssimos acordes daquela banda, dificilmente ouvidos nas cidades grandes.

Um pouco adiante, na Rua do Mercado Municipal, deparamos com um dos madrugadores, Dedé Marques a fazer sua caminhada matinal. Um pouco atrás, já havíamos encontrado com uma figura inconfundível, o roqueiro Binha de Dirce de Vavá de Cirilo, com Naná, irmã de Irineu do Tamarindo Bar que, entre tragos e pulos carnavalescos, não se conteve e desabafou:

— Poeta, poeta, este é o som da minha terra. Meu rock’n’roll favorito, santa-mariense, que não se compara. Meu som, poeta. Sacou?

À frente da banda, como se estivesse guiando a multidão, ia Protógenes Braga, Seu Toge de Seu Agnelo ou Seu Toge de Lourdes, comerciante nas horas próprias, auxiliar de enfermagem, farmacêutico, enfermeiro e até parteiro nas horas de improviso. Figura humana das mais prestativa e amiga, entusiasta presidente da Filarmônica.

Além deste, a comandar o foguetório, um policial militar, o cabo Rosival Neves, meu tio, o popular Rosi ou Peixe, também ia à frente, a soltar rojões, os famosos adrianinos, a contar vantagens, a criar histórias, seguido de perto pela meninada. É Rossi a fazer sua festa particular, como sempre gostou. Nos dias de futebol, levava fanfarra e caixas de foguetes para o campo.

Cabo Rosival Neves, Novais Neto e Jandira Almeida Neves. 1992. Foto: Arquivo pessoal.
De repente, a banda parou. Altamiro, saxofonista e policial civil, levanta a mão mostrando dois dedos, sinal claro para os músicos executarem o dobrado Dois Corações. Vêm-me, então, lembranças dos tempos de criança, quando via a Philarmônica passar em frente à casa de meus pais e minha mãe não me deixava acompanhá-la porque era noite, podia ser perigoso.

Quem não teve o privilégio de ouvir bandas como essa, não avalia quanto é criminoso vê-las acabando, morrer à míngua. Entidade de utilidade pública, a filarmônica da minha terra sobrevive graças às vontades férreas de seus componentes, pois nenhum deles recebe remuneração por ser músico. A maioria é formada por funcionários públicos aposentados. Há mestre de obras, pedreiro, sapateiro, alfaiate, trabalhador rural, taxista, carcereiro, carapina, mecânico, eletricista, estudante, bancário etc. Dois de seus integrantes têm mais de 70 anos e nenhum, menos de vinte. Apenas Seu Júlio Pedreiro é natural de Correntina (BA), os demais são santa-marienses.

Pessoas comuns, do nosso convívio, esses músicos por excelência e colaboradores prestimosos guardam viva a memória da Sociedade Philarmônica 6 de Outubro, fundada em 22 de novembro de 1908, pelo Coronel Bruno Martins da Cruz, cujo nome é homenagem ao natalício do mesmo. Seu Bruno, como a ele se referem os mais velhos, foi intendente de Santa Maria da Vitória em dois períodos: 1893 a 1896 e 1917 a 1920.


Sousafone (tuba). Acervo: Nélson Neves. Foto: Novais Neto.

João de Otacílio, Orivaldo Graia, Tazo, Sinhô de Joana, Altamiro de Jesus e Nélson Neves; Caduzinho, Henrique, Júlio Pedreiro, Nem Carapina, Quinca Coimbra e Nem Afonso; Wilson, Maninho Guarany, Rubem, Otávio Graia, Dalvo Graia, Gil e Agnaldo; Binha de Vicente Preto, Paulinho de Otaviano (ou de Dona Zulmira), Luciano de Jesus, Napu, Zé Torres e Agnelo Braga Neto, homens simples, trabalhadores que, apesar das lutas e labutas cotidianas, ainda nos oferecem momentos singularíssimos de regozijo e prazer.

De volta ao nosso passeio matutino-musical, estamos a ouvir, nesse momento, o belíssimo dobrado Cisne Branco. É literalmente onírico o que vemos. As pessoas abrem as janelas, portas e se amontoam para verem e ouvirem a banda executar os dobrados – músicas nem brega nem chique, sem qualquer rotulagem. Algo incomparável, muitos aparecem envoltos em cobertores.

Bem alto, dia claro, o Sol começa a aquecer aquela friorenta manhã de junho. Estamos na Rua Padre Othon Vieira Lima (Rua dos Doidos), bem em frente à sede da Filarmônica, ao lado do Baneb. Os músicos entram primeiro. Minutos depois, tempo suficiente para algum apronto, adentramos nós.

Sede da Sociedade Philarmônica 6 de Outubro. Santa Maria da Vitória, BA. Foto: Novais Neto.
Uma mesa coberta por uma toalha branquíssima e sobre ela alguns pratinhos com farofa de galinha brejeira, de quintal, temperada com açafrão (ou açafroa, como diz minha mãe), esperava pela gulodice e glutonice de alguns que se atiravam desastrosamente sobre seus troféus. E até como certa razão, do contrário, tudo acabaria logo e ninguém queria perder nada. Nem eu!

Sede da Sociedade Philarmônica 6 de Outubro. Santa Maria da Vitória, BA. Foto: Novais Neto.
A festa chegou ao fim. Muitos, assim como eu, ainda tentariam mais uns instantes de sono na expectativa de recuperar do cansaço das noites de forrós, xotes e rasta-pés em São Félix do Coribe e Santa Maria da Vitória. Afinal, ao que me pareceu, todos nós ali pertencíamos à turma da madruga como Dedé Marques, não por opção, mas por acidente de percurso, por exclusiva “culpa” da nossa Philarmônica 6 de Outubro.

Nélson Neves, Novais Neto e Altamiro de Dona Maria. Foto: Arquivo pessoal.

Janilza (Nena), Nélson Neves, Glécia Neves, Novais Neto (atrás), Thiago Afonso, Menininha e Adnair Neves

Novais Neto e Tilixa (músico de Correntina, BA). Foto: Arquivo pessoal.
Em tempo:
Esta crônica foi escrita em junho de 1992. Hoje, é bom registrar, a Filarmônica tem história melhor para nos contar. Há músicos jovens que se somam aos antigos batalhadores, porém, não dispõe ainda de um maestro. No ano de 2004, a 6 de Outubro passou a ter uma coirmã, a Lira do Corrente, composta predominantemente por jovens músicos entusiastas.

sábado, 20 de junho de 2020

A Bahia produz sereia

Neste conto, relembro meus tempos de estudante do curso primário e os ensinamentos de meus pais em momentos divertidos. Confiram e divirtam-se.

Era uma friíssima manhã como são as manhãs juninas da minha terra natal. O ano, já bem distante, era o de 1969. Naquela época, eu cursava o terceiro ano primário nas Escolas Reunidas Nossa Senhora das Vitórias, no Grupo Escolar Dr. José Borba, no Alto de Noca, como era conhecido.

Vindo do Educandário Popular Oliveira Magalhães, a famosa Escola de Dona Rosa (escola manga rosa para os gozadores), desfrutava de bom prestígio entre os colegas por não sentir tanta dificuldade na aprendizagem da Matemática Moderna, o terror de muitos deles.

A professora da turma era Elde Suely Bueno, moça muito bonita e distinta, filha do prestigiado médico Eliecin Bueno que, numa certa aula, solicitou um trabalho ilustrado sobre as regiões produtivas da Bahia. A mim coube fazer um cartaz ilustrado sobre o Recôncavo Baiano.

Naquele estágio, antes de ir para a escola, eu costumava mostrar a meu pai o que havia feito, inclusive era sempre ele quem me auxiliava na resolução dos problemas da tal Matemática Moderna, que alegava não saber. Por esta razão, pegava o livro e estudava, depois vinha me ensinar. Minha mãe, por outro lado, sempre me auxiliava a fazer redação, que chamávamos “composição”.

Meu pai só estudou até o terceiro ano primário com as antigas professoras Valentina e Chelidônia (Dona Senhora). Mas como sempre gostou dos números, adotou para estudo a Aritmética Progressiva e Álgebra Elementar, de Antônio Trajano. E como livro de leitura, a famosa Cartilha do Povo.

Aritmética Progressiva, Álgebra Elementar e Cartilha do Povo. Fotos: Reprodução / Internet (Vide Referências)
Voltando ao trabalho escolar pedido pela professora Elde Suely, fiz sem muita dificuldade, pois peguei algumas revistas do meu pai, tais como Seleções, Manchete, dentre outras, e recortei as figuras. Montei um bem ilustrado cartaz numa cartolina, no capricho, com o título “Produtos do Recôncavo Baiano” e, todo alegre, “me achando” (se fosse hoje certamente diria assim), mostrei a ele:

— Papai Tião, olha aqui o que eu fiz — e lhe dei a cartolina.

Ele botou em cima de uma mesinha de sua tenda de sapateiro, onde trabalhava, olhou com bastante atenção o cartaz e me perguntou:

— Não entendi uma coisa aqui: a Bahia produz sereia? Onde você viu isso? — e a entortar a boca como de hábito, completou – Sereia não existe. É lenda. É invenção de gente que não tem o que fazer.

— Produz sim. Tá aqui no livro. O senhor quer ver? — respondi com convicção e até com certa insolência. Antes, porém, olhei e lhe mostrei a página onde li que a Bahia produzia “sereia”.

— Decá esse livro aí. Xô ver se tá falando isso mesmo.

Peguei o livro de Estudos Sociais de páginas parecidas com papel-jornal e lhe mostrei o trecho que se referia à questionada “sereia”. E ele, em voz baixa e compassada, leu com bem cuidado:

— “A Bahia é um estado produtor de uma variedade de cereais, dentre o principais, o arroz, feijão, milho etc. [...]”. Oxente! Aqui tá escrito é “cereais” e não “sereias”. Preste mais atenção, moss! Só quer saber de jogar cabriola, escuvitiar. Só faz tudo correndo, dá nisso.

Em virtude, portanto, desse lamentável engano, teria que descolar as tais sereias que havia posto no cartaz. E, por via das dúvidas, deixei-o continuar a revisão. Após alguns minutos, ele me olhou fixamente como se questionasse.

— O que foi que o senhor achou desta vez? — já meio desconfiado, lhe perguntei.

— Você botou que a Bahia produz mamão, pinhão. Onde tá escrito isso aqui que eu não vi?

— Tá aqui, ó, bem nesta linha, dizendo que a Bahia produz madeira de “leite”.

Livro Vamos Sorrir - IV Ano Primário. Fotos: Reprodução / Internet (Vide Referências)
— Madeira de “leite”?! Que madeira de “leite” que nada, Novais, num sabe ler mais não, meu filho. Aqui tá escrito é madeira de “lei”, que é o jacarandá, cedro, peroba, pau d’arco e outros — concluiu ele, para minha decepção, que deveria, de novo, arrancar mais um monte de figurinhas.

Lembro, ademais, agora, já cursando o quarto ano primário com a professora Dilza Borges Soares, no Grupo Escolar Dr. Luiz Viana Filho, ela me pediu que fizesse a leitura de uma crônica do livro “Vamos Sorrir”, que falava sobre a vitória-régia e nela havia a palavra “rara”, que eu desconhecia. Soletrei o termo rara [rê-á-rê-á, rá-rá] e assim pronuncie toda a frase:

— A vitória-régia é uma flor de “rá-rá” beleza [...] ­— para delírio dos meus colegas e surpresa minha, porque não sabia o motivo de tanto riso.

E esta minha mania de tropeçar na leitura ou ler sem a devida atenção ou apressadamente, o que ainda me persegue até hoje (bem menos, claro!), levou-me, certa ocasião, a cometer um grave descuido ao colocar nome na capa de um trabalho escolar da minha prima Fátima Neves.

Como eu gostava de fazer essas coisas, desenhar letras, pois havia ganhado da minha tia Isaura Almeida um livro por título “Alfabetos e Monogramas: o tesouro da bordadeira”, muitos colegas me procuravam para esse fim. E numa destas, escrevi em um dever de casa de Fátima Neves: “Tralho” de História do Brasil em vez de Trabalho de História do Brasil.

Alfabetos e Monogramas: o tesouro da bordadeira e capa de trabalho - Adenilde Almeida Ferreira (1971). Fotos e acervo: Novais Neto. 2020.
Minha prima nem percebeu minha desatenção, pelo contrário, achou muito bonito e foi para casa toda saltitante. A mãe Arminda foi quem observou o tamanho engano. E assim, bem mais tarde, em episódio similar, quando fui me inscrever para um concurso público, anotei desta forma minha qualificação profissional: Químico “Industril” no lugar de Químico “Industrial”.

Referências:

ÁLGEBRA ELEMENTAR. Foto da capa do livro. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/antonio-trajano-algebra-elementar-livro-de-1961-matematica-D_NQ_NP_515101-MLB20282355830_042015-F.jpg>. Acesso em: 15 jun. 2020.

CARTILHA DO POVO. Foto da capa do livro. Disponível em: <https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSfHubNglkeYMIQHK9dSDNQj_qLqMvmNmtOTwaPvWeNhyphenhyphenH_BqvRkaKzRMbLDwJ0jsgCmROQc-WN2K8w_wScYY2kFdXxVOhpajXUry88d6PuaCYciKkWvjEGBKUSGPsS0w2PRyyW12Msjwq/w1200-h630-p-k-no-nu/AAA-01.JPG>. Acesso em: 15 jun. 2020.

CATALDI, R. (Org.). Alfabetos e monogramas: o tesouro da bordadeira. Edições de Ouro. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica S. A., [195-?].

VAMOS SORRIR. Fotos da capa e contracapa do livro. Disponível em: <https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1161327661-vamos-sorrir-quarto-ano-primario-_JM#position=18&type=item&tracking_id=dbbdc91e-cab2-4c90-a762-8d6889de77a0>. Acesso em: 20 jun. 2020.

sábado, 13 de junho de 2020

Deus em tempos cibernéticos

Nesta narrativa, para sua reflexão, apresento o que poderá ser consequência de nossos atos, voluntários ou não, com conexão divina ou mera coincidência. Confira e tire suas conclusões.

Numa dessas minhas idas a Santa Maria da Vitória, encontrei, certa noite, na Praça do Réptil ou Jardim dos Mallerossauros ou, para ser mais preciso, na Praça do Jacaré, com meu primo Adinil Neves de Sá, e levamos um longo papo. Ele, sempre muito criativo, há horas que aparece com cada uma que é só mesmo para darmos boas gaitadas.

— Primo, você sabia que Deus, hoje em dia, tá online, tá conectado?

— Sabia, não. E é mesmo, primo? Conta aí como é que é isso...

— Antigamente, quando a gente fazia uma maldade, uma coisa errada, quem pagava eram os filhos, os netos, os bisnetos. Hoje, não, quando você faz uma coisa ruim, cê paga é logo. Tem essa, não, de pagar depois – e narrou um monte de histórias que confirmariam sua “tese”.

Fiquei, por um tempo com aquilo na cabeça, e passava adiante a história para meus amigos, mas apenas a mostrar o lado hilário e criativo do primo, sem dar muito importância para a possível conectividade divina. Por via das dúvidas, nem discordava nem aceitava, curtia, tão somente.

Dia desses, já em Salvador, numa conversa com um amigo, lhe perguntei se iria assistir a algum jogo das Olimpíadas, na Arena Fonte Nova e, aproveitando, contei a ele, que se diz ateu, a “tese divina” do meu primo. Meu amigo apenas sorriu, sem dar tanta importância.

Novais e Lara Novais. Arena Fonte Nova. Salvador. Bahia. Olimpíadas Rio 2016. Fotos: Acervo do autor. 
— Vou, sim, ora se vou. E já comprei até os ingressos, quatro. Paguei duzentos paus. Vamos eu, minha mulher e os meninos. Cinquenta reais cada ingresso. Não ia perder uma oportunidade dessa de jeito nenhum.

Fiz cara de assustado misturado à reprovação e levei avante nossa conversa:

— Eu também comprei ontem à noite dois ingressos: um para a rodada dupla, Fiji e Coreia; México e Alemanha, e outro para o jogo Brasil e Dinamarca, e paguei duzentos contos. Não vi ingresso de cinquenta, só se for meia, para estudante.

— Isso mesmo. Eu e minha mulher pagamos meia. Uma coligada minha arrumou duas carteiras de estudante. Agora, somos estudantes — e sorriu, debochadamente.

— Fiquei triste. Não entendi — comentei e prossegui:

— Logo você que bate pesado em corrupto, quer ver todos eles atrás das grades, entra numa dessa! Não acredito. Uma carteirinha, então, não é nada demais? É coisa sem importância? — e parei, indignado.

Por algum tempo, fiquei a matutar o ocorrido. Depois, procurei esquecer para não me chatear com o tão querido amigo. Afinal, não sou juiz, nem palmatória do mundo, tampouco “paladino da moral e dos bons costumes”. Entretanto, tais vantagens não me seduzem. Um dia, talvez, ele vai ver que nada disso vale a pena, tão somente propaga o mau exemplo como se fosse coisa normal, sem maiores consequências.

Lembra-se daquela brincadeira do meu primo? De que Deus vive online? Pois é, parece que o castigo chegou foi cedo. Não é que, quando ele foi comprar os ingressos para o jogo mais esperado, Brasil x Dinamarca, acabou errando e comprou para outro jogo, México x Alemanha, que não lhe interessava. Mas se conformou, afinal, são dois grandes times a se defrontarem.

Chegou finalmente o dia do jogo, da rodada dupla, Fiji x Coreia do Sul e México x Alemanha. O primeiro a começar às 17 h e o segundo, às 19 h, como li num site de notícias. Como eu estava interessado mais no segundo jogo, México x Alemanha, atrasei-me um pouco para o primeiro, questão de 10 min, mais ou menos. Entretanto, para surpresa minha, a partida que estava acontecendo era México x Alemanha e não Fiji x Coreia. Liguei imediatamente para meu amigo.
Times olímpicos das Ilhas Fiji e da Coreia do Sul. Foto: Novais Neto. 2016.
— Rapaz, vem logo, senão você só vai ver o segundo jogo, Fiji x Correia, o mais fraco. Não tem mais jeito, o jornal da Internet informou errado – e finalizei.

Time olímpico das Ilhas Fiji. Foto: Novais Neto. 2016.

Time olímpico da Coreia do Sul. Foto: Novais Neto. 2016.

Diminuta torcida das Ilhas Fiji junto a torcedores do Bahia. Foto: Novais Neto. 2016.  
Ele ficou uma fera. Disse que iria processar o site, um monte de coisa que se sabe que não vai fazer mesmo. Também, meu amigo já estava muito chateado porque comprou o ingresso para o jogo errado. Falei, argumentei e acabei por convencê-lo a vir para a Fonte Nova. Ele mora perto, o que facilita bastante.

A primeira partida já havia acontecido. Foi um bom espetáculo. Estávamos no intervalo de uma hora entre um jogo e outro, quando ele chegou com sua turma. Ensopados. E me contou o ocorrido:

— Novais, inventei de vir de carro, enrolei seus colegas da Transalvador, passei pelo bloqueio, dizendo que ia pra casa, que morava no Engenho Velho de Brotas, pra tentar uma vaga em algum estacionamento ali mesmo por perto. Tava tudo cheio, marajá. Tive que ir pra Djalma Dutra, mais de um quilômetro de distância, botar o carro. E o pior: a chuva caiu feio e todo mundo molhou! Tô preocupado é com resfriado – e completou.

— E o pior, meu irmão, o meu menino não quis vir e eu tive que dar a zorra do ingresso a um amigo, pelo menos pra me fazer companhia, conversar sobre futebol. Me lasquei!

Começa então a segunda partida, Fiji x Coreia. Jogo muito fraco, sem emoção. Meu amigo e sua turma começaram a sentir muito frio, a tremer e a espirrar. Mal presságio. Ele, já totalmente desmotivado, virou-se para mim e sugeriu:

— Rapaz, vambora. Já começou tudo errado! Vambora logo pra não ficar pior – e saiu assim que terminou o primeiro tempo. Aliás, saímos! Procurei ser solidário, mesmo querendo ficar, para amenizar-lhe a raiva.

No outro dia, bem cedinho, encontrei com ele, que foi logo relembrando a história do meu primo Adinil, aquela do “Deus conectado”, que havia lhe contado dias antes, tirando-lhe sorrisos descrentes e irônicos.

— Rapaz, tá é todo mundo resfriado lá em casa. Seu primo tem razão, Deus tá é conectado mesmo, tá onlainíssimo! Sabe o que foi que fiz com aquelas merdas de carteirinhas de estudante? Peguei elas, esbagacei e joguei no lixo, de tanta raiva. E olha que foi a primeira vez que usei. Num vou esperar a segunda vez, não, marajá. Tô é fora disso!

* * *

Enviei, por e-mail, esta crônica a meu amigo, pedindo sua opinião e seu eu poderia publicá-la sem que ele se sentisse ofendido, mesmo porque não o identifiquei.

Dias depois, encontrei-o na rua e lhe perguntei:

— E aí, figura, o que achou da minha “delação não premiada”?

— Gostei, sim, tá muito boa. Pode publicar, tem nada, não. Meu nome num tá lá mesmo. Só que acho que 90% dos brasileiros fazem isso — justificou-se assim meio sem graça.

Não lhe disse mais nada, apenas respondi 
— mentalmente — utilizando o mesmo percentil que tentou justificar seu ato: “é por isso mesmo que 90% dos brasileiros têm os políticos que merecem”. E nos despedimos sem mais conversa.

Em tempo:
Crônica original publicada no Matutar em 12/11/2016. Disponível em: <https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/deus-em-tempos-ciberneticos/>. Acesso em: 12/6/2020. [Esta nova publicação foi revista e ilustrada].

sábado, 6 de junho de 2020

João Ladino e as siglas

Nesta crônica, apresento-lhe João Ladino, figura que vive a brigar com as siglas. Confiram e divirtam-se.

O problema do meu amigo autodidata João Ladino é com as siglas. Não é uma convivência amigável, em muitos casos chega mesmo a ser ruidosa. É que ele não consegue entender o significado de muitas delas. Ou melhor, não aceita o desenvolvimento destas siglas, quando apresentam letras a mais ou de menos, ou acham de contrariar nossa Língua Portuguesa.

Com cara de indignação, a parecer chateado, Ladino, ao me ver na barbearia de Lourinho, me questionou, antes mesmo de dar um bom-dia:

— Poeta, você sabe o que significa ECT? E UNEB? — respondi que sabia e desdobrei as tais siglas para desespero do meu interpelador.

— Mais aí tá errado. Quer ver, assunta: ECT significa Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Cadê o “bê” que não tem na sigla? Já UNEB é Universidade do Estado da Bahia. E o “ene” não serve pra nada? É compadre, não dá pra entender patavina nenhuma — e continuou:

— Isso ainda é pouco, poeta. Outras siglas contrariam a nossa Gramática. Por exemplo, a gente passa a vida inteirinha aprendendo que antes “pê” e “bê” se deve botar “eme”, nas outras consoantes não. De repente, aparecem as siglas EMTURSA, EMTRAN pondo “eme” antes de “tê”. Dá pra entender, poeta? — e continuou.

— Eu acho que deveriam ter mais cuidado com essas siglas que a gente lê como se fosse uma palavra, não as que a gente fala letra por letra como IPTU, IPVA. Tudo bem, é normal. Depois, esses mesmos entendidinhos são os primeiros a dizer que nosso Português vai de mal a pior. Eu, por exemplo, não sei nadinha de Português, mais o tiquinho que sei, gosto de usar – concluiu, enfático.

João Ladino é surpreendente. Só fez o segundo ano do antigo primário, mas gosta de estudar. Às vezes dá umas pauladas... Noutras situações, toma cada uma... Apenas por displicência e pressa. Ele é daqueles que fala e só depois pensa. Só anda desembestado. Mas João Ladino sabe, sim.

Em outra oportunidade, encontrei João Ladino no Estádio Turibão em Santa Maria da Vitória. Ele chegou para mim e, em tom de gozação, perguntou se eu sabia o que significava FIAT.

— Acho que sei, Ladino. FIAT quer dizer Fábrica Italiana Automobilística de Turim – acertei, Seu João? E esbanjei como se o ladino fosse eu.

Por sorte minha, bem recentemente, havia lido sobre a FIAT numa revista de automóveis em uma concessionária, por isso esnobei para cima do meu amigo, mas eu não sabia.

— Que acertou, que nada, homem. Eu tô falando é do FIAT 147, aquele da marcha dura, que muita gente comprou gato por lebre. Tá lembrado?

— Tô, sim. E o que significa então, Ladino, a sigla FIAT?

— FIAT, meu poeta, quer dizer: Fui Inganado Agora é Tarde. Sacou?

— Não saquei nada, Ladino. Sabe por quê? Do jeito que você falou, a sigla não é FIAT, é FEAT. Porque “enganado” se escreve com “e” e não com “i”. Não seria “Iludido”, Ladino, em vez de “Enganado”? – sugeri.

— Ô moço, quem foi “Inganado” agora fui eu. Comi “gambá errado” e nem empanzinei. Um amigo me falou e eu nem prestei atenção nisso. Tô ficando é besta mesmo!

E a propósito do acrônimo FIAT, sigla lida como palavra, recordo-me da Copa do Mundo de 1970, quando os narradores esportivos da Rádio Globo anunciavam dessa forma um de seus patrocinadores: “Fósforo marca Olho, Pinheiro ou Beija-Flor, uma companhia Fiat Lux”. A registrar apenas que a palavra Fiat nesta frase não é sigla, porém um verbo: “faça-se luz ou haja luz”, traduzido do Latim.

Ainda naquela mesma tarde, lá no estádio, resolvi brincar com Ladino, apertar mente dele, como se diz, só para ver o resultado:

— E você que é bom de bola, Ladino, vamos ver se é bom de sigla também. Você sabe o que significa CBD, que está na camisa do Rei Pelé?

Pelé, Copa de 1970, México e Romário, Copa de 1994, Estados Unidos. Fotos: Reproduções.
— É claro que sei, meu compadre. CBD quer dizer: Celeção Brasileira Defutebol.

– Tá desaprendendo, Ladino! Seleção se escreve com “esse” e não com “cê”. Além do mais, cadê o “efe” de Futebol? Você abreviou foi o “de”. E, por falar em CBD, você sabia que a CBD virou CBF desde 1979?

— Sabia não. Quanto à CBD, só vacilei mesmo foi no “esse” de Seleção. Nesta você fez um a zero com um gol contra aos 45 do segundo tempo, aliás, com um autogol, como dizem os portugas.

Parece que aquele foi o dia dos foras do querido amigo João Ladino. Não acertava uma, coitado. Esta, então, é hilariante. Ladino vestia uma camisa de malha que trazia bem no meio do peito, em letras garrafais, as iniciais OCM.

— E aí, Ladino, o que significa esse OCM na sua camisa?

— Isso aqui é mole pro Vasco, meu poeta. OCM quer dizer Ontônio Carlos Magalhães. E ponto final.

— Ontônio, Ladino? Ontônio com “O”? Antônio se escreve com “A” e não com “O”. Tá ficando “analfamãe de pai e beto”, Ladino? — brinquei de trocadilho com meu amigo.

— Ô moço, você não sabe o que é uma escola pública dessas de hoje. Vão ver que eles escreveram foi Ontônio com “O” mesmo. Tá sabendo?! Não sei se tô errado, não, meu poeta — concluiu, sorridente, e cascou fora! E mais uma vez, Ladino, falou antes de pensar!

Referências:

Foto de Pelé. Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.gazetaesportiva.com%2Ftimes%2Fbrasil%2Frelembre-10-grandes-momentos-da-carreira-do-rei-pele%2F&psig=AOvVaw1zMc48te5anrF1Q-86oPy5&ust=1591360203619000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCICO2POU6OkCFQAAAAAdAAAAABAD>. Acesso em: 4 jun. 2020.
Fotos dos escudos. Disponível em: <https://www.cbf.com.br/>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...