Era uma friíssima manhã como são as manhãs juninas da minha terra natal. O ano, já bem distante, era o de 1969. Naquela época, eu cursava o terceiro ano primário nas Escolas Reunidas Nossa Senhora das Vitórias, no Grupo Escolar Dr. José Borba, no Alto de Noca, como era conhecido.
Vindo do Educandário Popular Oliveira Magalhães, a famosa Escola de Dona Rosa (escola manga rosa para os gozadores), desfrutava de bom prestígio entre os colegas por não sentir tanta dificuldade na aprendizagem da Matemática Moderna, o terror de muitos deles.
A professora da turma era Elde Suely Bueno, moça muito bonita e distinta, filha do prestigiado médico Eliecin Bueno que, numa certa aula, solicitou um trabalho ilustrado sobre as regiões produtivas da Bahia. A mim coube fazer um cartaz ilustrado sobre o Recôncavo Baiano.
Naquele estágio, antes de ir para a escola, eu costumava mostrar a meu pai o que havia feito, inclusive era sempre ele quem me auxiliava na resolução dos problemas da tal Matemática Moderna, que alegava não saber. Por esta razão, pegava o livro e estudava, depois vinha me ensinar. Minha mãe, por outro lado, sempre me auxiliava a fazer redação, que chamávamos “composição”.
Meu pai só estudou até o terceiro ano primário com as antigas professoras Valentina e Chelidônia (Dona Senhora). Mas como sempre gostou dos números, adotou para estudo a Aritmética Progressiva e Álgebra Elementar, de Antônio Trajano. E como livro de leitura, a famosa Cartilha do Povo.
Aritmética Progressiva, Álgebra Elementar e Cartilha do Povo. Fotos: Reprodução / Internet (Vide Referências) |
— Papai Tião, olha aqui o que eu fiz — e lhe dei a cartolina.
Ele botou em cima de uma mesinha de sua tenda de sapateiro, onde trabalhava, olhou com bastante atenção o cartaz e me perguntou:
— Não entendi uma coisa aqui: a Bahia produz sereia? Onde você viu isso? — e a entortar a boca como de hábito, completou – Sereia não existe. É lenda. É invenção de gente que não tem o que fazer.
— Produz sim. Tá aqui no livro. O senhor quer ver? — respondi com convicção e até com certa insolência. Antes, porém, olhei e lhe mostrei a página onde li que a Bahia produzia “sereia”.
— Decá esse livro aí. Xô ver se tá falando isso mesmo.
Peguei o livro de Estudos Sociais de páginas parecidas com papel-jornal e lhe mostrei o trecho que se referia à questionada “sereia”. E ele, em voz baixa e compassada, leu com bem cuidado:
— “A Bahia é um estado produtor de uma variedade de cereais, dentre o principais, o arroz, feijão, milho etc. [...]”. Oxente! Aqui tá escrito é “cereais” e não “sereias”. Preste mais atenção, moss! Só quer saber de jogar cabriola, escuvitiar. Só faz tudo correndo, dá nisso.
Em virtude, portanto, desse lamentável engano, teria que descolar as tais sereias que havia posto no cartaz. E, por via das dúvidas, deixei-o continuar a revisão. Após alguns minutos, ele me olhou fixamente como se questionasse.
— O que foi que o senhor achou desta vez? — já meio desconfiado, lhe perguntei.
— Você botou que a Bahia produz mamão, pinhão. Onde tá escrito isso aqui que eu não vi?
— Tá aqui, ó, bem nesta linha, dizendo que a Bahia produz madeira de “leite”.
Livro Vamos Sorrir - IV Ano Primário. Fotos: Reprodução / Internet (Vide Referências) |
Lembro, ademais, agora, já cursando o quarto ano primário com a professora Dilza Borges Soares, no Grupo Escolar Dr. Luiz Viana Filho, ela me pediu que fizesse a leitura de uma crônica do livro “Vamos Sorrir”, que falava sobre a vitória-régia e nela havia a palavra “rara”, que eu desconhecia. Soletrei o termo rara [rê-á-rê-á, rá-rá] e assim pronuncie toda a frase:
— A vitória-régia é uma flor de “rá-rá” beleza [...] — para delírio dos meus colegas e surpresa minha, porque não sabia o motivo de tanto riso.
E esta minha mania de tropeçar na leitura ou ler sem a devida atenção ou apressadamente, o que ainda me persegue até hoje (bem menos, claro!), levou-me, certa ocasião, a cometer um grave descuido ao colocar nome na capa de um trabalho escolar da minha prima Fátima Neves.
Como eu gostava de fazer essas coisas, desenhar letras, pois havia ganhado da minha tia Isaura Almeida um livro por título “Alfabetos e Monogramas: o tesouro da bordadeira”, muitos colegas me procuravam para esse fim. E numa destas, escrevi em um dever de casa de Fátima Neves: “Tralho” de História do Brasil em vez de Trabalho de História do Brasil.
Alfabetos e Monogramas: o tesouro da bordadeira e capa de trabalho - Adenilde Almeida Ferreira (1971). Fotos e acervo: Novais Neto. 2020. |
Referências:
ÁLGEBRA ELEMENTAR. Foto da capa do livro. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/antonio-trajano-algebra-elementar-livro-de-1961-matematica-D_NQ_NP_515101-MLB20282355830_042015-F.jpg>. Acesso em: 15 jun. 2020.
CARTILHA DO POVO. Foto da capa do livro. Disponível em: <https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSfHubNglkeYMIQHK9dSDNQj_qLqMvmNmtOTwaPvWeNhyphenhyphenH_BqvRkaKzRMbLDwJ0jsgCmROQc-WN2K8w_wScYY2kFdXxVOhpajXUry88d6PuaCYciKkWvjEGBKUSGPsS0w2PRyyW12Msjwq/w1200-h630-p-k-no-nu/AAA-01.JPG>. Acesso em: 15 jun. 2020.
CATALDI, R. (Org.). Alfabetos e monogramas: o tesouro da bordadeira. Edições de Ouro. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica S. A., [195-?].
VAMOS SORRIR. Fotos da capa e contracapa do livro. Disponível em: <https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-1161327661-vamos-sorrir-quarto-ano-primario-_JM#position=18&type=item&tracking_id=dbbdc91e-cab2-4c90-a762-8d6889de77a0>. Acesso em: 20 jun. 2020.
Parabens, Novais! Voce me fez voltar no tempo e recordar da minha infancia! Nao tenho memoria tao boa quanto a tua. As lembranças nao sao ricas em detalhes.
ResponderExcluirFiquei encantado com a ideia da Bahia ser produtora de Sereias. Fantástico! Mas ri muito também ao lembrar da piada em que um senhor foi ao médico, que lhe recomendou comer aveia várias vezes ao dia, pois é bom para a saúde. Aí a esposa dele pediu ao filho para conversar com o pai dele, porque ela não aguentava mais transar tantas vezes durante o dia!
ResponderExcluirKkkkkkkkk
ResponderExcluirParabens amigo poeta.
ResponderExcluirBela crônica, dei muitas gargalhadas!
Kkkkkkk
Produzir cereias.nao e produzir sereias...
ResponderExcluirVamos sorrir. Parabéns pela memória. Bom Dia
Parabéns, seu pai era um intelectual apesar do pouco estudo.
ResponderExcluirParabéns meu amigo, muito engraçada a crônica, muito bom voltar ao tempo, abraço
ResponderExcluirAchei bem interessante a sua história, dei muitas risadas na troca do emprego das palavras no texto. Lembrei do tempo da escola primária na hora da sabatina de matemática, quem errasse a resposta era castigado com bolos de palmatória na palma da mão
ResponderExcluirÉ deveras meu amigo. No carro adiante dos bois foi mais uma das suas pérolas engraçadas! Eu cometi uma mais grave aqui em São Paulo, quando fazia estudos para readmissão de funcionários. O cara foi demitido com justa causa por cometer improbidades financeiras em sua gestão. Escrevi gestação e mandei para aprovação. Inda bem que a minha supervisora era muito detalhista não deixou escapar, antes de passar para o Departamento. Aqule professor Duílio, certa vez falou: Isto está com muito desorganicionamento: Ele queria dizer na verdade: Desorganizado. Wilson Barros interpelou na hora. Muitas risadas. Claro que as memórias de infâncias são mais deliciosas.
ResponderExcluirParabéns Novais!extensivo a Seu Tiao e seus Mestres.Tenho certeza, suas melhores fontes de aprendizado e inspiração.
ResponderExcluirQ memória privilegiada!
Quem nunca cometeu equívocos, com nossa tão rica língua pátria?
São muito divertidas essas memórias escolares, narradas com tanta sensibilidade e zelo.
Obrigado amigo, por me permitir sorrir com todas elas.🙏🙌🤝
Eu também, vez ou outra, escrevo faltando letras. Na minha dissertação de mestrado escrevi o título: "Mostro de olhos verdes". Faltando um "n" no monstro.
ResponderExcluirParabéns Tio Novais! Além da sua Crônica me fazer rir pude refletir o quanto a inocência de uma criança tem valor! Amei a leitura!
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