sábado, 13 de junho de 2020

Deus em tempos cibernéticos

Nesta narrativa, para sua reflexão, apresento o que poderá ser consequência de nossos atos, voluntários ou não, com conexão divina ou mera coincidência. Confira e tire suas conclusões.

Numa dessas minhas idas a Santa Maria da Vitória, encontrei, certa noite, na Praça do Réptil ou Jardim dos Mallerossauros ou, para ser mais preciso, na Praça do Jacaré, com meu primo Adinil Neves de Sá, e levamos um longo papo. Ele, sempre muito criativo, há horas que aparece com cada uma que é só mesmo para darmos boas gaitadas.

— Primo, você sabia que Deus, hoje em dia, tá online, tá conectado?

— Sabia, não. E é mesmo, primo? Conta aí como é que é isso...

— Antigamente, quando a gente fazia uma maldade, uma coisa errada, quem pagava eram os filhos, os netos, os bisnetos. Hoje, não, quando você faz uma coisa ruim, cê paga é logo. Tem essa, não, de pagar depois – e narrou um monte de histórias que confirmariam sua “tese”.

Fiquei, por um tempo com aquilo na cabeça, e passava adiante a história para meus amigos, mas apenas a mostrar o lado hilário e criativo do primo, sem dar muito importância para a possível conectividade divina. Por via das dúvidas, nem discordava nem aceitava, curtia, tão somente.

Dia desses, já em Salvador, numa conversa com um amigo, lhe perguntei se iria assistir a algum jogo das Olimpíadas, na Arena Fonte Nova e, aproveitando, contei a ele, que se diz ateu, a “tese divina” do meu primo. Meu amigo apenas sorriu, sem dar tanta importância.

Novais e Lara Novais. Arena Fonte Nova. Salvador. Bahia. Olimpíadas Rio 2016. Fotos: Acervo do autor. 
— Vou, sim, ora se vou. E já comprei até os ingressos, quatro. Paguei duzentos paus. Vamos eu, minha mulher e os meninos. Cinquenta reais cada ingresso. Não ia perder uma oportunidade dessa de jeito nenhum.

Fiz cara de assustado misturado à reprovação e levei avante nossa conversa:

— Eu também comprei ontem à noite dois ingressos: um para a rodada dupla, Fiji e Coreia; México e Alemanha, e outro para o jogo Brasil e Dinamarca, e paguei duzentos contos. Não vi ingresso de cinquenta, só se for meia, para estudante.

— Isso mesmo. Eu e minha mulher pagamos meia. Uma coligada minha arrumou duas carteiras de estudante. Agora, somos estudantes — e sorriu, debochadamente.

— Fiquei triste. Não entendi — comentei e prossegui:

— Logo você que bate pesado em corrupto, quer ver todos eles atrás das grades, entra numa dessa! Não acredito. Uma carteirinha, então, não é nada demais? É coisa sem importância? — e parei, indignado.

Por algum tempo, fiquei a matutar o ocorrido. Depois, procurei esquecer para não me chatear com o tão querido amigo. Afinal, não sou juiz, nem palmatória do mundo, tampouco “paladino da moral e dos bons costumes”. Entretanto, tais vantagens não me seduzem. Um dia, talvez, ele vai ver que nada disso vale a pena, tão somente propaga o mau exemplo como se fosse coisa normal, sem maiores consequências.

Lembra-se daquela brincadeira do meu primo? De que Deus vive online? Pois é, parece que o castigo chegou foi cedo. Não é que, quando ele foi comprar os ingressos para o jogo mais esperado, Brasil x Dinamarca, acabou errando e comprou para outro jogo, México x Alemanha, que não lhe interessava. Mas se conformou, afinal, são dois grandes times a se defrontarem.

Chegou finalmente o dia do jogo, da rodada dupla, Fiji x Coreia do Sul e México x Alemanha. O primeiro a começar às 17 h e o segundo, às 19 h, como li num site de notícias. Como eu estava interessado mais no segundo jogo, México x Alemanha, atrasei-me um pouco para o primeiro, questão de 10 min, mais ou menos. Entretanto, para surpresa minha, a partida que estava acontecendo era México x Alemanha e não Fiji x Coreia. Liguei imediatamente para meu amigo.
Times olímpicos das Ilhas Fiji e da Coreia do Sul. Foto: Novais Neto. 2016.
— Rapaz, vem logo, senão você só vai ver o segundo jogo, Fiji x Correia, o mais fraco. Não tem mais jeito, o jornal da Internet informou errado – e finalizei.

Time olímpico das Ilhas Fiji. Foto: Novais Neto. 2016.

Time olímpico da Coreia do Sul. Foto: Novais Neto. 2016.

Diminuta torcida das Ilhas Fiji junto a torcedores do Bahia. Foto: Novais Neto. 2016.  
Ele ficou uma fera. Disse que iria processar o site, um monte de coisa que se sabe que não vai fazer mesmo. Também, meu amigo já estava muito chateado porque comprou o ingresso para o jogo errado. Falei, argumentei e acabei por convencê-lo a vir para a Fonte Nova. Ele mora perto, o que facilita bastante.

A primeira partida já havia acontecido. Foi um bom espetáculo. Estávamos no intervalo de uma hora entre um jogo e outro, quando ele chegou com sua turma. Ensopados. E me contou o ocorrido:

— Novais, inventei de vir de carro, enrolei seus colegas da Transalvador, passei pelo bloqueio, dizendo que ia pra casa, que morava no Engenho Velho de Brotas, pra tentar uma vaga em algum estacionamento ali mesmo por perto. Tava tudo cheio, marajá. Tive que ir pra Djalma Dutra, mais de um quilômetro de distância, botar o carro. E o pior: a chuva caiu feio e todo mundo molhou! Tô preocupado é com resfriado – e completou.

— E o pior, meu irmão, o meu menino não quis vir e eu tive que dar a zorra do ingresso a um amigo, pelo menos pra me fazer companhia, conversar sobre futebol. Me lasquei!

Começa então a segunda partida, Fiji x Coreia. Jogo muito fraco, sem emoção. Meu amigo e sua turma começaram a sentir muito frio, a tremer e a espirrar. Mal presságio. Ele, já totalmente desmotivado, virou-se para mim e sugeriu:

— Rapaz, vambora. Já começou tudo errado! Vambora logo pra não ficar pior – e saiu assim que terminou o primeiro tempo. Aliás, saímos! Procurei ser solidário, mesmo querendo ficar, para amenizar-lhe a raiva.

No outro dia, bem cedinho, encontrei com ele, que foi logo relembrando a história do meu primo Adinil, aquela do “Deus conectado”, que havia lhe contado dias antes, tirando-lhe sorrisos descrentes e irônicos.

— Rapaz, tá é todo mundo resfriado lá em casa. Seu primo tem razão, Deus tá é conectado mesmo, tá onlainíssimo! Sabe o que foi que fiz com aquelas merdas de carteirinhas de estudante? Peguei elas, esbagacei e joguei no lixo, de tanta raiva. E olha que foi a primeira vez que usei. Num vou esperar a segunda vez, não, marajá. Tô é fora disso!

* * *

Enviei, por e-mail, esta crônica a meu amigo, pedindo sua opinião e seu eu poderia publicá-la sem que ele se sentisse ofendido, mesmo porque não o identifiquei.

Dias depois, encontrei-o na rua e lhe perguntei:

— E aí, figura, o que achou da minha “delação não premiada”?

— Gostei, sim, tá muito boa. Pode publicar, tem nada, não. Meu nome num tá lá mesmo. Só que acho que 90% dos brasileiros fazem isso — justificou-se assim meio sem graça.

Não lhe disse mais nada, apenas respondi 
— mentalmente — utilizando o mesmo percentil que tentou justificar seu ato: “é por isso mesmo que 90% dos brasileiros têm os políticos que merecem”. E nos despedimos sem mais conversa.

Em tempo:
Crônica original publicada no Matutar em 12/11/2016. Disponível em: <https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/deus-em-tempos-ciberneticos/>. Acesso em: 12/6/2020. [Esta nova publicação foi revista e ilustrada].

6 comentários:

  1. Imagine você que o atual presidente da República, que foi eleito sob a égide de acabar com o toma lá e dá cá, um cara que mamou na velha República! Pois é! Com a água a lhe bater na bunda começou a nova politica de fato com criatividade: Dá cá e toma lá! Até ai tudo bem. O problema maior é a justificativa dos seus seguidores, de que ele não está fazendo nada de errado, apenas está se defendendo! A minha preocupação maior é quando Deus resolver seguir a rede social do nosso presidente. Agora o nosso Adinil sempre foi espirituoso e as suas crônicas de vida sempre foram pautadas dentro de uma lógica inquestionável. Sempre com uma dose de seriedade. Ele é invencível, e você teve uma prova no cotidiano. E que prova, mas só exarada por alguém com o cronismo na veia. espetacular! O seu amigo ateu, na verdade, teve um dia de cão, que também pelo jeito o cussaruim( termo usado por Manuel Bandeira) também parece estar on line

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  2. É meu amigo, on line Deus sempre esteve e estará, nós é que não nos conectamos com Ele. Que possamos melhorar a nossa conectividade tomando atitudes tal qual seu amigo sa crônica fez. Caso contrário, como postou seu leitor, o "cussaruim" está atento, está on line.

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  3. Que ótima leitura! Quanto aos acontecimentos, muito interessante rsrs.

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  4. Meu amigo, bem comentado pela Rita, Deus sempre esteve e estará conectado, se nós estivéssemos conectado com ele com certeza teríamos um mundo melhor. Falta amor, honestidade, paciência, humildade,muita fé...etc. Abraço

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  5. Parabens por mais essa bela cronica!

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Crônica para os meus Sessenta e Sete

Dia 24 de outubro último, meu aniversário, Justino Cosme gravou dois vídeos meus alusivos à data, nos quais declamo duas trovas à margem do ...