sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Clodomir Santos de Morais - Um prefácio

Apresento nesta crônica pretenso prefácio que fiz para a segunda edição do livro de poesia “O amor e a sociedade”, de Clodomir Santos de Morais, em 2011. Confiram.

O primeiro livro publicado por um santa-mariense foi, certamente, “O amor e a sociedade”, de Clodomir Morais, no ano de 1950, pela Tipografia Helius (SP). Naquela época, Morais contava 22 anos e já era membro da Academia de Letras da Cidade de São Paulo. Somente 11 anos depois, em 1961, o livro “Porto Calendário”, Prêmio Jabuti de Literatura (1962), de Osório Alves de Castro, outro ícone das letras da cidade de Santa Maria da Vitória, veio a lume pela Livraria Francisco Alves, volume 4 da Coleção Terra Forte, planejada e dirigida por Paulo Dantas.

Clodomir Morais, O amor e a sociedade. São Paulo: Tipografia Helius, 1950.
Para a segunda edição do seu primeiro livro, Morais me fez o honroso convite para escrever o prefácio. Entre a euforia e o medo, topei o desafio. “O amor e a sociedade” é um livro de poesia com belíssimos sonetos, dentre os quais, bem ao estilo que me prende, humorístico, “A loira e a lei” (p. 34), que eu q
uis colocar na contracapa. Morais, no entanto, rechaçou e escolheu o soneto A China” (p. 33), que bem melhor o representa.

Neste livro, “O amor e a sociedade”, você vai conhecer um Clodomir Morais diferente, surpreendente, lírico, indignado, e sobretudo, poeta, na essência do termo.

Prefácio à segunda edição de “O amor e a sociedade”


Corria a década de 1970, chamada “anos de chumbo”, dentro do período em que governou o Brasil o general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Governo considerado o mais duro e repressivo da Ditadura Militar, que se instalara no Brasil em consequência do Golpe de Estado de 1964.

Nessa época, precisamente, em 1971, ingressei no Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória, que mudou para Centro Educacional Santamariense, depois de ter sido aprovado em Exame de Admissão, algo semelhante a um vestibular do Curso Primário.

Situado, assim, no tempo e no espaço, lembro-me de que minha mãe, Jandira Almeida Neves, especialmente ela, me falava muito de Morais, certamente, por ter sido ele compatrício, contemporâneo e amigo de Osias Afonso de Almeida, irmão dela, portanto, meu tio, que o acolheu em São Paulo. Foi assim que “conheci” Morais. Só tempos depois, vim a conhecer Clodomir Santos de Morais, Clodomir Morais ou simplesmente Morais: o escritor, advogado, sociólogo, cientista político, o cosmopolita.

Osias Almeida. Foto: Pinheiro Filho (SP, 1946).
Osias foi um poeta temporão, escriturário, bancário, que muitos de sua época lembram-se dele como uma pessoa de inteligência rara e cultivador de amizades, além de elegante, gentil e bonito, segundo as vozes femininas da época. Tive a sorte de recolher alguns poemas e textos escritos por ele, que me foram entregues por Seu Agnelo Braga e Seu Zé Moreno. Minha convivência com ele foi muito efêmera, tinha eu apenas quatro anos de idade. Guardo duas ou três lembranças dele, visto que o alcoolismo o levou muito cedo, aos 35 anos.

Morais, aquele jovem inteligente, lutador, visionário, comunista convicto, que os reacionistas da época preferiam tachá-lo de subversivo, saiu de Santa Maria da Vitória, ainda muito novo, para São Paulo e, daí, para Pernambuco. Em seguida, em consequência de seus ideais e de perseguições políticas, partiu para longo exílio. Partiu para o mundo. Esta é, portanto, parte da história que muitos sabemos. É o que meus pais e Milton Borba, seu ex-colega do Curso Primário, me contavam.

Anos depois, no final de 1979, quando a Anistia era fato consumado, Morais retornou a Santa Maria da Vitória. Eu estava lá, na Praça do Jacaré, vivendo, juntamente com muitos santa-marienses, um dia de muita alegria: o retorno do, agora, filho ilustre, cidadão do mundo, um homem que se pôs acima da dor.

Na década de 1980, eu morava na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, em Salvador, onde tínhamos a Biblioteca Osório Alves de Castro, que havia sido presenteada por Morais com mais de 600 livros, alguns bem raros, que ele nos mandou da Nicarágua. Foi lá, lendo cópias de jornais antigos, encadernados, que tomei conhecimento de um Morais diferente, um Morais poeta, algo inimaginado. E conheci, logo, o belíssimo e romântico soneto decassílabo, “Morta”, típico da Terceira Geração Romântica brasileira. Foi um susto para mim, pois jamais havia pensado.

Soneto para Raul Coimbra (Seu Quinca). 1948.
E ficou por aí mesmo. Tive meu primeiro contato pessoal com Morais, em Brasília, ainda na década de 1980, num dos meus passeios de férias. Foi um sonho realizado. Morais, sempre muito gentil e amável, contou-me parte de sua saída de Santa Maria e o convívio com Osias, em São Paulo. Falou-me das venturas e desventuras românticas do meu tio, inclusive, o provável motivo que o teria levado à dipsomania e, desta para a prematura morte.

Em 1988, publiquei meu primeiro livro, “Flutuando na areia”, em prosa e verso, e mandei um exemplar para meu conterrâneo. De volta, recebi longa carta falando não só dos meus escritos, mas de Osias Almeida, seu amigo. Trechos desta missiva publiquei em dois dos meus livros.

Quanto à arte de, efetivamente, fazer versos, de Morais, só muito depois, na década de 1990, é que Joaquim Lisboa Neto (Kinkas) apresentou-me o livro “O amor e a sociedade”. Li avidamente todo o exemplar, viajei num mundo jamais imaginado por mim, mas idealizado por Morais. Os sonetos, com dez sílabas poéticas, a maioria, típicos de “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões, são de uma beleza singularíssima: sonoros, como palavras poéticas, postas nos lugares certos, ritmados. Sonetos, verdadeiramente, na essência do termo.

Uma das poesias de Clodomir prendeu-me, logo à primeira leitura, a atenção: “A loira e a lei”. Decorei quase que instantaneamente e passei a declamá-la. Dentre muitos e muitos outros, igualmente belos, este é de um bom humor impagável. Os poemas livres de Morais são uma aula da arte de versejar: “Tarde demais”, “Os dois corações”, “Saudades” e “Os cinquenta e dois mil nordestinos”, que narra a saudade da terra natal e a dor do nordestino em terras paulistas.


Jornal A Nova Idéia onde foi publicado o soneto “Morta” para Quinca Coimbra. 1948.
O soneto “Meu pai” é o poeta expondo sua dor ante a morte do seu herói, Antônio Lisboa de Morais. Muitos outros poemas eu poderia citar. Não o farei, entretanto, deixo para você, caro leitor, saborear “O amor e a sociedade”, um livro verdadeiramente atual, que mostra as dores e as venturas dos amores e das sociedades de ontem, tão presentes em nossos dias, vide poema “A China”, que ilustra a contracapa deste belíssimo livro: o primeiro de Morais, quando o poeta ingressou na Academia de Letras da Cidade de São Paulo, em 1950. 

Aniversário da Philarmônica 6 de Outubro. 2014. Foto: Acervo pessoal.

Clodomir Morais e Novais Neto. 2014. Foto: Rosa Tunes.
Meu Caro Amigo e Conterrâneo Morais, vivi um misto de alegria, medo, prazer e imensa responsabilidade, quando você me convidou a prefaciar a segunda edição de seu livro. A tarefa não me seria fácil, e não foi mesmo. Não escrevi um prefácio, contei como conheci você e seu livro, quando me deleitei e sorvi cada página de “O amor e a sociedade”, num aprendizado gradativo e constante. E o mais gratificante ainda: coube a mim a nova diagramação do livro.

O amor e a sociedade. 2. ed. (Santa Maria da Vitória: Gráfica Real, 2011).
Obrigado, portanto, Morais, pelo presente que me deu! Obrigado, por tudo que fez e continua fazendo por nossa querida Santa Maria da Vitória! Obrigado, Morais, pelo desafio a mim proposto. Obrigado, por seus versos, que dizem muito melhor do que eu! Obrigado, pelos ensinamentos!

Salvador (BA), Primavera de 2011.
Novais Neto
Poeta e cronista santa-mariense


A loira e a lei 


É loira a minha nova namorada,
Novinha, todavia muito astuta;
Desejo até fazer uma permuta
Por uma jovem experimentada.

Desvaneci e resultou em nada;
Agora segurou. É uma luta!
Por mais que falo, falo, não me escuta,
Parece que não quer ser despejada.

Meu coração tornou-se meu rosário
De desgostos com este locatário,
Que me obriga travar um pugilato.

Diz ela ser direito que lhe cabe;
Contudo, vou acreditar, quem sabe
O seja nova lei do inquilinato.

(MORAIS, Clodomir Santos de. O amor e a sociedade. 2. ed. Santa Maria da Vitória: Gráfica Real, 2011. p. 34, 114 p.) 

Nota: Clodomir Santos de Morais nos deixou em 25/3/2016, aos 87 anos, em Santa Maria da Vitória (BA).

Referências:

CLODOMIR SANTOS DE MORAIS. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/homenagens/4168400>. Acesso em: 24 dez. 2020. (Texto adaptado publicado no site Recanto das Letras em 2/3/2013). 

PREMIADOS 1962. Disponível em: <https://www.premiojabuti.com.br/premiados-por-edicao/premiacao/?ano=1962>. Acesso em: 19 fev. 2021.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Quase inimiga por causa de um beijo

Esta crônica, que não pretende desvendar os mistérios de um beijo, tão somente se diverte como uma das mais sublimes demonstração humana de afeto. Confiram.   

Estive longamente pensando sobre as consequências de um beijo. Lembrei-me de alguns deles: o beijo de Judas — o mais famoso da história humana — que o levou a trair Jesus para cumprimento de profecia do próprio traído; recordei os beijos do Conde Drácula, que subjugava suas vítimas e as transformava em vampiro; veio-me também à mente o romance “O beijo da mulher aranha”, do argentino Manuel Puig, que virou o filme américo-brasileiro, de título homônimo, dirigido por Héctor Babenco, cineasta argentino naturalizado brasileiro.

O beijo da mulher aranha. Foto: Autor.
Neste devaneio infindo, revi mentalmente cenas de filmes cujos beijos marcaram para sempre a vida dos seus protagonistas, o que me levou a fazer esta crônica, a partir de beijos reais, beijos imaginários e beijos pretendidos (e/ou concretizados), como o primeiro beijo apaixonado entre Scarlett O’Hara (Vivien Leight) e Rhett Butler (Clark Gable) no longa metragem estadunidense “E o vento levou”, dirigido por Victor Fleming:

— Me beije, Scarlett! Me beije! — diz Gable.

Dentre tantos e tantos beijos famosos ou não, que levaram muitos anônimos ao estrelato, recordei também os beijos do escalafobético lusitano, José Alves de Moura, o Beijoqueiro, apelido cunhado pela imprensa brasileira. E, por último, pensei nos beijos dos poetas. Ah, os poetas! Aliás, poeta não beija, oscula... Será mesmo?!

O beijoqueiro José Alves de Moura e Romário. Foto: Reprodução / Site (vide Referências).


Mário Quintana, solenizado e sensibilíssimo poeta gaúcho, de Alegrete, acerta em cheio ao afirmar categoricamente: “Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra, é bobagem. / Você não só não esquece a outra pessoa como pensa muito mais nela... / [...]”.

E por falar em poeta, aqui entro na história, quando me vi determinado a oscular alguém que me havia levado a infindas “viagens”. O beijo que o impulso me moveu não é o de Judas. Por certo, o de Drácula, não para transformar minha “vítima” em vampiresa e subjugá-la, porém, fazê-la minha amante, minha amada. Só isso! E este desejo crescente inspirou-me a rascunhar estas trovas:

E se de manhã te vejo
eu só penso em ser feliz,
de ti roubar mais um beijo,
fazer o que sempre quis.

A tua boca, meu bem,
só me desperta desejo,
e nem sei se me convém,
porém, vou roubar-te um beijo.

Ainda fiz outras composições trovadorescas que prometiam levar adiante o firme propósito de beijar esse alguém, sem jamais pensar em consequências maiores que não fosse selar um grande amor:

Quanto mais negas teu beijo,
meu desejo multiplica,
aproveitando esse ensejo,
passa tudo e ele fica.

Por mais que promessa faça,
meu sonho não vai mudar.
Vou cumprir tal ameaça:
um beijo teu vou roubar.

E assim o fiz: roubei... Beijei-a como se o fizesse pela última vez, como se aquele beijo me redimisse de grande erro. Promessa cumprida. Estava a salvo. Senti-me aliviado e certo de que houvera conquistado meu grande amor. No entanto, “o tiro saiu pela culatra”, concluí logo em seguida.

Conquistei, sim, uma quase inimizade. Esse alguém ficou por um bom tempo sem comigo falar, o que me levou, nesse ínterim, a ponderar. Refletir sobre o que houvera feito de tão reprovável para merecer tão ingente castigo. Judas, por Cristo foi perdoado, e olha que ele o traiu. E eu apenas tentei conquistar minha musa.

Meditei... meditei... o que me levou à seguinte conclusão: o erro cometido foi haver me comportado como incipiente poeta, em vez de beijá-la, osculei-a. A pensar assim, talvez volte à carga, para que esta despretensiosa crônica possa ter o título por mim desejado: “Amantes por causa de um beijo”.

Referências:

BEIJOQUEIRO. Biografia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Beijoqueiro>. Acesso em: 17 out. 2020.

O BEIJOQUEIRO e seus ‘ataques’ a boleiros. Fotografia do Beijoqueiro e Romário. Disponível em: <https://www.ocuriosodofutebol.com.br/2015/10/o-beijoqueiro-e-seus-ataques-boleiros.html>. Acesso em: 17 out. 2020.

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Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...