sábado, 28 de setembro de 2019

Ensinamento canino para humanoides

"No trânsito, o sentido é a vida", é o que nos ensina, nesta crônica, um pequeno vira-lata.

Finalzinho de tarde de um dia qualquer na Cidade do Salvador, lá pelos idos de 2005 ou 2006. Marcos Guimarães, com sua peculiar elegância e postura irrepreensível, adequadamente trajando seu uniforme de trabalho, talonário de autuação e caneta nas mãos, e eu, à época, um aprendiz ainda em estágio probatório na Transalvador, observávamos o trânsito que fluía ininterrupto na Ligação Iguatemi-Paralela, mais conhecida pela sigla LIP.

Tudo, como foi dito, absolutamente dentro do esperado para aquele lapso temporal. Porém, o trânsito é muito dinâmico e, de um momento para outro, tudo pode mudar e beirar o caos. De repente: buzinaço, frenagens bruscas, xingamentos, gritos e o trânsito, outrora frenético, ficou lento e congestionado.

Meu colega e eu, mesmo acostumados com anormalidades dessas ocasiões, vimos, serpenteando entre os veículos, um corredor urbano, bem trajado, do tipo atlético aparentemente “bombado” e cérebro diminuto, a provocar a ira de condutores e indignação de transeuntes, deixou a todos estupefatos quando, ao terminar a travessia das pistas, tranquilamente subiu no passeio e, a andar, seguiu se itinerário sem nenhuma pressa, a contrariar o que houvera feito instantes passados de modo irresponsável e imprudente.

Por outro lado, uma cena inobservada por muitos pedestres, um cãozinho vira-lata, magricela, pestilento, tenta atravessar a pista e quase é atropelado. Recuou, assustado e, ao perceber algumas pessoas aglomeradas naquele local, posicionou-se bem atrás delas e, embora a matar pulgas que o atormentavam, aguardou pacientemente o fechamento do semáforo para atravessar para o outro lado da pista. Quando isso aconteceu, ele seguiu a multidão e saiu a farejar restos de alimentos sem correr o risco de atropelamento.

Ilustração de Jailson Borges (Jão). 2019.
O que se pode observar nesses dois episódios? Algo muito simples, imagino eu. Se por um lado alguém supostamente racional, pensante, expõe a própria vida numa atitude impensada e grotesca, por outro lado, um ser sabidamente não humano, mas orientado pelo instinto preservador da espécie, certamente vítima de algumas bordoadas veiculares, acabou tendo ações que se esperariam daquele tresloucado e inconsequente corredor citadino.

E aquele pequenino cão vira-lata, doente, esquálido e pestilencioso, abanando um rabinho quase sem pelos — mas feliz — seguiu seu incerto caminho a virar latas em busca de comida para lhe garantir mais um dia de sobrevivência, deu sua contribuição canina, mesmo sem saber, a tantos quantos expõem a própria vida, irrefletida e injustificadamente.

Salvador (BA), 18 a 25 de setembro de 2019.
Semana Nacional do Trânsito
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Obs.: Crônica publicada inicialmente no Jornal da Associação dos Servidores em Transporte e Trânsito do Município (Astram), nº 16, Junho 2014, p. 4.

domingo, 22 de setembro de 2019

Um atleta incansável

Quando pensamos que já vimos muito, na verdade, não vimos quase nada na vida, é o que mostro neste microconto.

Dia desses, ao dirigir-me à Transalvador,  no Vale dos Barris, meu local de trabalho, passando pelo Dique do Tororó, avistei parcialmente uma cena que me atiçou a curiosidade. Era de alguém, talvez um andador, um corredor ou um grande atleta numa mesma posição por um longo tempo.

Procurei passar bem perto do local para conhecer um superatleta. Qual foi a minha surpresa ao ver que o suposto esportista só tinha pernas de EPI e poderia ficar por um muito mais tempo na mesma posição, porque a vontade dele é a vontade do dono das pernas humanas e não a dele.


Restou-me, portanto, apenas sorrir e registrar a singularíssima imagem produzida por um Equipamento de Proteção Individual (EPI).

Píer do Dique do Tororó, Salvador, Bahia, Brasil. Foto: Novais Neto. 2019.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Seu Upa e Seu Cupa

Nesta crônica, apresento-lhes um desses propagandistas de milagrosos produtos que os vemos vender nas praças e feiras livres das nossas cidades.

Não tem jeito mesmo! É essa a conclusão a que chego, agora, neste exato momento. Já fiz inumeráveis promessas de não falar tanto de saudade em minhas crônicas. Mas ela — a saudade — é teimosa, não “larga do meu pé”. E eu acho até bom, sabe por quê? Porque ela me revigora, ajuda-me a enfrentar a dureza cotidiana.


Hoje, não sei por que bulhufas — uma vez mais — voltei aos tempos da Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, a inolvidável Caes, década de 1980, localizada na Ladeira do Hospital Santa Isabel, aqui em Salvador, Bahia.

Recordei-me de Julinho (nome fictício), um dos residentes que ao retornar da escola, já perto do meio-dia, apresenta-nos uma grande novidade: um sabonete que prometia curar tudo, segundo ele, dito por um propagandista na Praça da Sé.

Antes, porém, de dizer que sabão foi aquele, volto ainda mais no tempo e no espaço e agora estou na minha terra natal, anos 1970, a lembrar-me de Zelino Jega Véia e Chiquinho Boca Aberta, mercando pão quentinho ao romper do dia pelas ruas da Rua de Baixo e da Rua de Cima (isso mesmo!):

— Ê o pão! Ê o pão carteira, sovado e de sal.

Ou na parte da tarde:

— Ê o ginete, a peta, o ximango, a queca! Quem vai querer? Tá quentinho, da hora!

Isso me fez recordar, ademais, uma figura que por lá apareceu dizendo ter sido goleiro das divisões de base do Vitória ou do Bahia. Não me recordo direito. A bem da verdade é que ele se esforçava muito como guarda-meta (êta coisa mais antiga!), porém, a lembrança que dele ficou, foi a forma exótica, incomum de anunciar seus produtos nas ruas santa-marienses:

— Cinquenta, paca, tatu, cobra assada, cotia moqueada e galinha de moqueca! Olhe aí. Quem vai querer?

E um detalhe curioso que me foi lembrado por Hermes Novais, meu irmão, é que ele anunciava isso tudo e só vendia pastel e banana real. Imagem!

Como, naquela época, pouco se ouvia falar de Salvador entre nós, jovens, muito menos ainda a palavra moqueca, o goleiro soteropolitano assumiu o cognome Moqueca, chegando a defender as cores da Associação Atlética Castro Alves por algumas temporadas.

Vale lembrar que ainda hoje os mais velhos da cidade se referem a Salvador como sendo Bahia, verdadeiramente. Haja vista a grande distância da Capital, a população regional tem maior intercâmbio com Goiás, Brasília e Norte de Minas. Os mais velhos, como meu pai, normalmente dizem “vou pra Bahia”, quando se referem à eventual viagem a nossa Metrópole.

De volta ao nosso assunto principal, o tal “sabonete cura-tudo”, certa ocasião, ao passar pela Praça da Sé, não é que encontrei possivelmente o mesmo vendedor, cercado por curiosos e desocupados, tirando uma de médico “tudologista”, o que me fez lembrar, sem dúvida, o sabonete de Julinho, amigo já referido no início desta crônica. Parei por uns instantes para ouvi-lo mercar:


Plano Inclinado Gonçalves, Salvador. Foto: Novais Neto. 2019.
— Meus amigos, este sabão que vocês tão vendo na minha mão é o mais novo milagre da medicina natural do Brasil, quiçá mundial! Cura tudo quanto é doença de pele: pano-branco, pano-preto, creca, impigem, unha encravada, ziquizira, mijadura de potó, bicho-de-porco e até chulé da miss Bahia do Irã — garantia ele com indisfarçável conhecimento farmacológico.

E para entreter ainda mais seus ávidos assistentes, vez por outra mirava o Plano Inclinado Gonçalves a sua frente e soltava uma daquelas frases de duplo sentido:

— Vocês tão vendo o Plano Inclinado ali? Pois bem. Reparem bem direitinho nele: quando uma gaiola sobe, a outra gaiola desce. O nome de uma gaiola é Seu Upa e o nome da outra gaiola é Seu Cupa. Agora vejam o que acontece: quando Seu Upa sobe, Seu Cupa desce! — e repetia, repetia, repetia com toda seriedade do mundo:

— Quando Seu Upa sobe, Seu Cupa desce! — e mirava os sorridentes espectadores.
Ilustração de Jailson Borges (Jão). 2019.

A plateia delirava, “caía na risada” e o mercador, impassível, imperturbável, voltava a falar do seu miraculoso e insólito produto, que nada mais era senão algo parecido com sabão de coco embrulhado em papel laminado para enganar os pacóvios, simplórios e desavisados ou — sabe-se lá — propiciar até mesmo um dubitável Efeito Placebo!

Salvador (BA), 16/9/2019.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...