sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O mais improvável dos encontros

Naquela noite, retornei mais cedo para casa. Era o dia 24 de junho de 2002, véspera do jogo das seleções do Brasil e da Inglaterra pelas quartas-de-final da XVII Copa do Mundo, sediada na Coreia do Sul e no Japão, que começaria às três e meia da madrugada do dia seguinte.

Estava em animado forró em São Félix do Coribe, nossa cidade coirmã, do outro lado do Rio Corrente. Lá, sorvi alguns copos de quentão para esquentar a friorenta noite. Nada em exagero. O pensamento, no entanto, não saía do jogo. É que havia prometido a meu pai assistir à partida com ele, embora soubesse que dificilmente cumpriria meu compromisso, pois nestas ocasiões sempre fico muito ansioso.

Já em casa, tentei, vãmente, conciliar o sono. Até que cochilava um pouco, tinha sonhos — para não dizer pesadelos — e acordava com o futebol no pensamento. Finalmente, começou o jogo. Saí de mansinho do meu quarto e fui para a rua sem que ele percebesse minha escapulida.

Subi a Rua Teixeira de Freitas completamente deserta. Imagina que esta rua em dias normais, às três da madruga, já é bastante parada, naquele momento, então, todo mundo grudado na frente do televisor, não se via uma única alma vivente a zanzar. Tudo era silêncio e vazio.

E lá vou eu rua acima, pelo meio. Nas casas, pelas frestas, viam-se as luzes acesas e algum burburinho. De repente, ouvi a palavra gol. Era gol da Inglaterra. Um ou dois foguetes espocaram, sinal da presença algum gringo inglês ou argentino escondido naquelas bandas ou mesmo brasileiro metido a anglicano.

Continuei minha caminhada, agora, mais nervoso ainda. Àquela hora, corria um ventinho frio bem típico das noites juninas. Finalmente, cheguei a meu destino: a casa de Manelim de Seu Dió do Pote, irmão de Mazim Fotógrafo, na Rua José Leopoldo Lima. 
Bati com suavidade na porta, porta de vidro que me permitiu ver a televisão ligada. De lá de dentro, uma voz que parecia amedrontada perguntou:

— Quem é?

— Ladrão — retruquei — e escutei a confabulância: “Tio Manoel, num vou abrir, não. Tem um ladrão lá fora”. “Que ladrão que nada, menino mofino, assombrado. Ladrão que é ladrão vai dizer que é ladrão? Acende a luz da área pra ver quem é”.

— Eu já tava imaginando que só podia ser você, Nó, com as suas latumias. Você não me pega mais, não. Vamos, entra, vamos ver o jogo, que tá é bom — convidou-me gentilmente Manelim.

O jogo já encaminhava para o final do primeiro tempo, quando Ronaldinho Gaúcho deu uma bonita arrancada, passou a bola a Rivaldo, que marcou o gol de empate. Aí sim, fiquei mais tranquilo.

No intervalo, meu anfitrião convidou-me a fazer um concentrado chá de erva-cidreira misturado com camomila para acalmar os nervos. E assim foi feito, mas o resultado desejado não veio. Fiquei foi mais nervoso ainda, a infusão parece que teve efeito reverso: o coração disparou, deu-me uma sudorese  danada, ou suadeira, para não fugir da minha origem. Ainda assim, tentei suportar quanto pude.

Começa o segundo tempo e, logo no início, ao cobrar falta despretensiosa (ao que pareceu), Ronaldinho Gaúcho, apelidado de Bruxo ou Mago, fez valer sua alcunha ao marcar o segundo (e improvável) gol do Brasil. Pronto! Não havia quem me prendesse na frente daquela televisão. E caí fora, não suportava mais ver o jogo de tanta tensão. Fiz o caminho inverso. Desci a Teixeira de Freitas e a rua continuava dormindo, só um açougue já estava com as portas abertas. Parei, dei uma espiadela e segui minha tortuosa senda, doido para o jogo acabar, melhor dizendo, meu sofrimento.

Cobrança de falta de Ronaldinho que originou o gol. Foto: Reprodução / Internet.

Comemoração de Ronaldinho e do banco de reservas. Foto: Reprodução / Internet.
Já no finalzinho da rua, aliás, no começo, bem embaixo, próximo ao Jardim Fifa, vi um vulto, magrelo e alto, vindo em minha direção. Confesso que não tive o menor medo, afinal, não havia motivo para tanto, lá é bem tranquilo. Reconhecemo-nos. Era Fredão de Zé Dentista, que foi logo indagando:

— Que foi, moss? Que é que cê tá fazendo esta hora na rua? Tá perdido que nem eu?

— Que perdido, que nada, Fredão, tô é com medo de ver o jogo.

— Então são dois. Só que dei um azar disgramado, saí tão avexado de casa pra vim pro Corrente Verde me esconder, que acabei esquecendo a peste chave em cima da geladeira. Agora, vou ficar bestando pelas ruas até acabar o diacho desse jogo, porque lá eu num volto mais, não, nem peado.

— Tá bom! Então vamos “medir rua” por aí. Vamos subir a Lavandeira, seguir pela estrada do Derba até o Riacho Seco pra ver se o tempo passa mais depressa — sugeri ao meu parceiro de infortúnio.

E foi o que fizemos. Andamos, andamos, contemplamos os matos todos secos, o que é bem comum no mês de junho, escorraçamos alguns vira-latas que vinham nos morder e seguimos. De vez em quando, ao longe, ouvíamos um “uuuuu”, sinal de algum lance mais dramático do jogo.

Conversamos sobre poesia, sobre a ONG Corrente Verde, Ecologia, futebol, que não havia jeito de sair das nossas cabeças, quando finalmente ouvimos uma explosão de alegria, espocar de foguetes: o Brasil ganhou, só poderia ser! Passos — agora — bem apressados. Queríamos ouvir os comentários, ver os lances e respirar aliviados. “Passamos por mais um adversário”, pensamos nós, cada qual com seus botões, evidentemente.

No caminho de volta, ainda na estrada do Derba, vimos Dema Bodeiro e filhos, eufóricos, a comemorar o feito canarinho. Os irmãos Babão e Finho de Cilerino, felizes da vida, iniciavam sua corrida matinal, e tantas outras pessoas com riso largo estampado no rosto, penduradas nas janelas de suas casas ou nas calçadas, no Bairro da Sambaíba, a festejarem a vitória brasileira, naquela frigidíssima alvorada junina.

Fredão de Zé Dentista tomou o rumo da Rua dos Doidos, onde mora, e eu fui para a casa de meus pais, na Rua Teixeira de Freitas, tomar um café quentinho passado em coador de pano para espantar o frio daquele gelado e feliz alvorecer. E ver os gols da partida, claro. Conversar com meu pai, Tião 
Sapateiro, aficionado por futebol, principalmente em Copa do Mundo, e admirador mor de Ronaldinho Gaúcho.

Quanto ao mim e Fredão, soma-se à coincidência de padecermos de idêntico “mal”: não aguentar assistir a jogos decisivos do Brasil, outro “mal”, bem mais ameno, que nos aflige, também nos une, porque é o que nos põe do mesmo lado das paixões clubísticas: sermos, 
desde os anos 1970, torcedores do Fluminense, o Tricolor das Laranjeiras. Somos, portanto, “pós-de-arroz”!

Referências:

COBRANÇA de falta (foto). Disponível em: <https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLiCXpoU5tdxY0TaowtbezTvKfNBrI-u5zTJngjG7D8wolDGZeJ-I1WPFJVtbAY-W8S1oJNb9Nqot3wGJodOWVovRzYIqTzBSrjZSgxnT06A8V7u4-AUWqJASuS9xjAsbykw7E3B0_EvM/s1600/r10+01.jpg>. Acesso em: 13 ago. 2021.

COMEMORAÇÃO do gol (foto). Disponível em: <https://i.ytimg.com/vi/7hcFmS1KvRg/mqdefault.jpg>. Acesso em: 13 ago. 2021.

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Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...