sábado, 22 de agosto de 2020

Ibotirama: um festival de música, poesia e recordações

No mês dos tradicionais festivais de música e poesia da cidade Ibotirama, eis a crônica que lhes apresento como forma de homenagear tão belo evento. Confiram.

O ano já vai distante: 1986, quando se realizou, na Bahia, o I Festival de Poesia de Ibotirama (FEPI). Paralelamente a esse evento, aconteceu também o X Festival de Música Popular de Ibotirama (FEMPI), dos quais não tive conhecimento. Tudo isso, há 34 anos.

Naquela época, eu mo
rava em Salvador, na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória (CAES), já escrevia crônicas e poesias, e costumava expô-las no mural da residência, além de publicá-las no combativo O Posseiro, jornal autogestionário da minha cidade, dirigido por Joaquim Lisboa Neto, do qual fui um de seus colaboradores, assim como integrei, por algum tempo, o Conselho de Direção.

No ano de 1988, incentivado pelos estudantes moradores, fiz minha inscrição no III FEPI, com a poesia intitulada “Desventuras humanas”, que foi selecionada. Declamei-a, porém não logrei classificação para a grande final. Essa poesia, inclusive, foge um pouco a temática das demais que costumo escrever: não é românica, mas de questionamentos.

De que nos vale saber do Yang e do Yin
Se o mundo nos obriga a dizer sim?
Para que servem estruturas estabelecidas
Se sempre agimos pela exceção?
Por que você não tenta rompê-las
Ao invés de corromper-se
E diz um lacônico não?

De que nos adianta a Ciência e seus Princípios
Se seus fins não nos levam à paz?
E eu, que zorra nenhuma entendo,
Admiro as Leis do Tantra,
Inclusive uma que nos diz que o Universo
Vive em êxtase constante.
E nós, terráqueos, sub-raça errante,
Não passamos de excreta desse orgasmo,
Mergulhados no eterno marasmo
Esperando que um dia tudo vai mudar.

Vivo à espera de você, que me ignora,
E, ainda assim, não vejo a hora
De tê-la na cama, mesmo que seja na lama,
Pois acho que sou metade sem você.
Quisera ser (ir)racional ou, pudera,
Agir só pelo instinto, não sentir ciúme
E não ser tão burro a sua espera.

Ah, vou mergulhar no prana
E viver a paz sacana
Sem grana, que até mesmo critiquei.
De que me adianta saber que
O Átomo é o Universo em miniatura,
Se a esta altura 
 que onda!  
Nunca sei o que serei.


Salvador (BA), 16/3/1988
(Do livro Flutuando na areia, 1988, p. 9)


Naquele festival, fui com mais dois poetas: Manoel de Oliveira Santos, natural de Central (BA) e radicado em Santa Maria da Vitória, e Valter Batista Xavier, Doxa, santa-mariense, que nos deixou em 2019, motivo de homenagem que fizemos a ele e a Zeca Bahia no nosso X RPM — Recital Poético-Musical de Santa Maria da Vitória, naquele mesmo ano.

Um episódio, naquele III FEPI, protagonizado por Doxa, tornou-se indelével. Para perder a inibição, isto é, criar coragem para declamar seu poema, o poeta sorveu umas doses de uísque e foi para o desafio. Sua poesia fazia alusão ao então candidato a presidente Fernando Collor de Melo (15/3/1990 a 29/12/1992) que, nos “santinhos” distribuídos para o eleitorado, trazia as letras “Co” e “or” na cor azul e os dois “ll”, nas cores verde e amarela, que nosso poeta Doxa os apelidou de dois palitinhos.

Fernando Collor. Eleições de 1989.
Anunciado para declamar seu poema, do qual não me recordo o título, Doxa subiu, confiante, ao palco e assim começou:

— Dois palitinhos clorofilados e xantofilados... Deu branco.

Fez pequena pausa, vasculhou rapidamente a cachimônia, reencarou a atenta plateia e, de novo, precedido de um “agora vai”, recomeçou seu poema:

— Dois palitinhos clorofilados e xantofilados... Deu branco.

Meu conterrâneo ainda tentou uma terceira vez declamar seu poema, sempre anteposto de um “agora vai”, mas desistiu, fato que deixou o apresentador e o público sem nada entender, visto que aquele “deu branco” pareceu, afinal, ser parte da poesia. Isso, tempos depois, foi motivo das mais belas gargalhadas e, como já disse, ficou a marca da sua poesia: “deu branco!”.

Passadas mais de três décadas, voltei a Ibotirama em 2019, mês de agosto, não para defender uma criação poética, porém para fazer parte da banca de jurados do XXXIII FEPI, convite feito por Abgail Montalvão, indicado que fui pela conterrânea Ângela. Tudo muito bonito, tudo bem organizado. Cidade e evento bem diferentes (para melhor) do que presenciei mais de 30 anos transcorridos.



Paulo Gabiru em apresentação. 2019.

Crisna Imhof e Novais Neto. 2019.

Lembrança de participação no Festival de Música e Poesias de Ibotirama. 2019.
Na ocasião, tive a sorte de hospedar-me no mesmo hotel que ficaram Paulo Gabiru e André Marques, ambos músicos e compositores, quando trocamos experiências e acabamos por descobrir que entre mim e Gabiru havia grau de parentesco, já que somos descendentes da Família Affonso de Oliveira, fundadora da cidade de Santa Maria da Vitória, o que contribuiu por estreitar nossos laços de amizade.

Aproveitei a oportunidade para lhe ofertar meu último livro “Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória”, publicado em 2009, quando o município completou 100 anos de emancipação política e administrativa, e mostrei-lhe minha tentativa de fazer uma coroa de trovas, gênero poético pelo qual nutro grande afeição 
— a trova — tanto a popular quanto a acadêmica. 

Novais Neto, André Marques, Teiú Rocha e Paulo Gabiru. 2019.

Quanto à coroa de sonetos, este gênero sim é bem conhecido dos sonetistas. Por ter o soneto forma rígida, isto é, dois quartetos e dois tercetos, o que totaliza 14 versos, a coroa de sonetos é formada por 15 sonetos assim distribuídos: o último verso do primeiro soneto será o primeiro do segundo soneto; o último verso do segundo soneto será o primeiro do terceiro e assim por diante, até completar 14 sonetos. O décimo quinto, e derradeiro soneto, será formado pelos últimos versos dos 14 sonetos anteriores e deverá representar a síntese deles.

Partindo, portanto, do modelo da coroa de sonetos, tentei fazer uma coroa de trovas, que também tem forma rígida: quatro versos (dez a menos que o soneto) setissilábicos (redondilha maior), com rimas perfeitas, alternadas (abab) e que deve ter sentido completo, isto é, ter princípio, meio e fim. E não leva título. Quanto à forma referida (abab), é a adotada pela União Brasileira de Trovadores (UBT), criada no Rio de Janeiro em 21/8/1966, enquanto que a Seção de Salvador é de 16/4/1969, da qual sou membro desde 1999.

Assim, a coroa de trovas assume a seguinte forma: o último verso da primeira trova deverá ser o primeiro verso da segunda; o último verso da segunda será o primeiro da terceira e assim por diante, até completar quatro trovas. A quinta trova será formada pelos últimos versos das quatro anteriores e deverá, tal qual o soneto, representar uma síntese delas. Vejam, portanto, minha tentativa: 

Meu alvorecer (coroa de trovas) e WhatsApp de Paulo Gabiru.

Além da coroa de trovas, apresentei a Paulo Gabiru a poesia por título “Já vai tarde”, que faz parte do repertório da Folia de Reis de São Francisco, de São Félix do Coribe (BA). Tempos depois, recebo dele um extraordinário presente: a mesma poesia musicada de forma surpreendente, para mim, e com a marca indelével e singular de seu dedilhar (ou acariciar, é melhor) as cordas do violão.


Fiquei por algum tempo a contemplá-la, ouvi inúmeras vezes. Finalmente, decidi por editar o vídeo que segue e, antes de publicá-lo no You Tube, para divulgá-lo, mandei-o para Gabiru, via WhatsApp, que me respondeu com a seguinte mensagem: “Ficou bacana demais. Leve e despretensiosa”. Ei-lo, portanto, para sua apreciação, meu caro leitor:



Obrigado, Mestre Gabiru, pelo não prometido, por isso mesmo, inesperado e surpreendente mimo. Ternamente, aceite meu abraço e gratidão. 

Referências:

ARAÚJO, Carlos; FERREIRA, Edson Alves; PEREIRA, Edvaldo Joaquim. Ibotirama e as canções de agosto. São Paulo: Salvador: SCT, EGBA, 2013. 254p. (Coleção Apoio).

BOMFIM, Tâmara Rossene Andrade. Festival de música popular de Ibotirama: gênese e sobrevivência, na rota contrária a indústria cultural. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 2, n. 2, 2014. Disponível em: <https://www.revistas.uneb.br/index.php/grauzero/article/view/3266>. Acesso em: 18 ago. 2019.

CARUSO, Paulo Roberto de Oliveira. Coroa de trovas às brisas de outono. In: CONCURSO LITERÁRIO POESIAS SEM FRONTEIRAS, 16., 2017. Anais... Disponível em: <http://poesiassemfronteiras.no.comunidades.net/poesias-dos-vencedores-2017>. Acesso em: 31 jul. 2020.

NOVAIS NETO. Conselho de Direção. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 7, n. 61, p. 2, jun. 1986. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA061986061.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.

______. Colóquio flácido. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 13, n. 81, p. 8, fev. 1992. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA021992081.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.

______. Contrastes. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 5, n. 46, p. 2, dez. 1983. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA121983046.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.

______. Flutuando na areia. Salvador: Multipress, 1988. 112p. p. 9.

______. Já vai tarde. In: MALLERO, Chico; BOMFIM, Ana Helena. (Orgs.). Algumas músicas: Reis de São Francisco: São Félix do Coribe, 2017. 16p. p. 10. (Edição dos organizadores).

______. Mensagem ao estudante santa-mariense. In: O Posseiro, Santa Maria da Vitória, ano 5, n. 46, p. 9, dez. 1983. Disponível em: <http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PPOSSBA121983046.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2020.

______. Meu lugar é aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Press Color, 2009. 164p. p. 109.

PRIMEIRO PROGRAMA ELEITORAL VAI AO AR NO RÁDIO E NA TELEVISÃO. Panfleto eleitoral de Fernando Collor, 1989. Disponível em: <https://efemeridesdoefemello.com/2014/09/15/primeiro-programa-eleitoral-vai-ao-ar-no-radio-e-na-televisao/>. Acesso em: 29 jul. 2020.

WANKE, Eno Teodoro. A trova. Rio de Janeiro (Guanabara): Pongetti, 1973. 

Em tempo (7/9/2020):

Ao redigi esta crônica, tomei por base publicação em livro, trabalho acadêmico, revistas e sites confiáveis, os quais afirmam que o primeiro festival de poesia ocorreu no ano de 1986. Quando, no entanto, recebi, via e-mail, informação replicada pelo amigo e ativista cultural Cleber Eduão, com base em pesquisa feita por Jarbas Éssi, poeta e cineasta ibotiramense, percebi disparidade entre o ano inicial e o número de edições do referido festival. Voltei a verificar as fontes consultadas, a fim de buscar possível engano por mim cometido. Apaziguei-me, afinal, ao ler esta ressalva no mesmo e-mail, confirmada em postagem na página de Facebook do prefeito Terence Lessa:

[...]

Neste ano, corrigiremos um erro histórico no festival de poesia, acrescentando dois anos mais, que não foram contabilizados pelo poder público na época: festivais de poesia de 1985 e 1986. Sendo assim, completaremos 36 festivais ininterruptos de poesia.

[...]

Fonte consultada:

FESTIVAL CULTURAL VIRTUAL 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/prefeitoterencelessa/posts/2613439708692480>. Acesso em: 7 set. 2020.

domingo, 9 de agosto de 2020

Tião Sapateiro, jogador da Loteca

Hoje, Dia dos Pais, permitam-me lembrar do meu pai, que recentemente partiu, relembrar uma de suas raras paixões, a Loteca, como também seu jeito único de analisar cada jogo. 

A mais tradicional e popular loteria brasileira é certamente a Esportiva, a Loteca, que caiu no gosto do povo, esse povo que alimentou vivas esperanças de ficar milionário nas noites de domingo para segunda-feira ao acertar seus 13 palpites, isto é, não errar os resultados dos 13 jogos propostos.

Volantes antigos, cartão perfurado e volante atual. Vide Referências.
A Loteca foi criada em 27/5/1969, mas o primeiro teste só aconteceu de forma experimental em em 19/4/1970. Um de seus primeiros milionários foi o boiadeiro Miron Vieira de Souza, morador de Ivolândia, no Estado de Goiás. À época, setembro de 1975, o ivolandense acertou os 13 resultados do Concurso 254 e embolsou sozinho 22 milhões de cruzeiros, o que equivaleria hoje, corrigidos pelo IGP-DI, algo em torno de 53 milhões de reais.

Essa esperança anunciada pelo presidente da época, Artur da Costa e Silva (15/3/1967–31/8/1996), como a hora de o “povo fica rico”, não tardou a chegar a Santa Maria da Vitória, não necessariamente lá, mas em Bom Jesus da Lapa, cidade mais próxima. Como o primeiro concurso ocorreu em abril de 1970 e me recordo de ver meu pai marcando seus palpites em volantes em torno do número 30, e que os jogos aconteciam nos finais de semana, deduzo que a Loteca deve ter começado a levar sorte aos santa-marienses ainda naquele mesmo ano, época de Copa do Mundo, ano do Tri.

Um dos primeiros divulgadores da Loteca em Santa Maria, até onde me recordo, foi Quinquinha de Milu, que o perdeu para o jogo de prognósticos, visto tornar-se Quinquinha da Loteria. Posteriormente, veio o mais conhecido deles, o cambista Nanu, que percorria toda a cidade a pé para vender seu famoso e tradicional “bolão da esportiva”, dentre outras loterias. Para ele, Nanu, também lhes aditaram o “sobrenome” Loteria a seu apelido, que virou também Nanu da Loteria.

Naquele tempo, os volantes marcados eram levados a Bom Jesus da Lapa para serem perfurados, melhor dizendo, registrados. O valor mínimo da aposta era de um cruzeiro novo 
— NCr$ (aprox. sete reais), no entanto o apostador pagava dois cruzeiros novos, para custear as despesas de viagem de Quinquinha até Lapa do Bom Jesus, o que acontecia nas tardes de quarta-feira.
Quadro elaborado por Novais Neto. 2020. Fonte: Wikipédia.
Algum tempo depois, Santa Maria da Vitória passou a ter sua Casa Lotérica, cujo proprietário era Manoel Dourado. Ela ficava localizada na esquina da Rua Juracy Magalhães, rua da Farmácia Imperial, de Seu João Alexandre de Oliveira, quase em frente ao Mercado Municipal, onde é atualmente a loja de calçados do casal Eujácio e Neura. 

A Loteria Esportiva, que teve seu último concurso em 4/9/1989, no formato tradicional, o dos 13 pontos, passou por inúmeras modificações. Sobrevivente que foi da CPI dos Anões do Orçamento, episódio que envolveu mais de 30 parlamentares, a Loteca continua a alimentar sonhos de riqueza, sem o glamour de outrora, evidentemente. O último concurso, o de número 893, ocorreu em 16/3/2020. Seu inequívoco legado, no entanto, é mesmo o da imprevisível Zebrinha, que realizou muitos sonhos de tornar-se milionário da noite para o dia. Por outro lado, ela também frustrou outros tantos sonhos.

Quanto a meu pai, Tião Sapateiro, este era apaixonado por esta modalidade de jogo de azar (ou de sorte). Era jogador na acepção precisa do termo. Ele não torcia para qualquer time, apenas marcava o que considerava lógico, depois de noites de estudo no tradicional “O Curingão no Esporte”, informativo que elencava os últimos jogos de cada equipe para orientar o apostador. Escutava também os palpites de especialistas, como os do matemático Oswald Souza ou comentaristas esportivos da Super Rádio Tupy. Ganhou uma ou duas vezes, bem pouco, quando os resultados atendiam à lógica futebolística.

O Coringão no Futebol (vide Referências) e Tião marcando cartela. Foto: Novais Neto. 1982.

Alguns times, entretanto, deixavam-no com a “pulga atrás da orelha”. Um deles era o Flamengo, não porque fosse contra o rubro-negro. Não, não era bem isso. É que meu pai dizia que o Flamengo “só entrava na loteria pra lhe tirar da jogada”. Quando marcava nele, ele perdia; quando marcava no outro, ele ganhava o jogo. Só teria chance de acertar o ponto se gastasse um palpite triplo. 

Descontraído mesmo era vê-lo discutir resultados de jogos com seu amigo de infância, Zé Braga, que ele o tratava por Zezinho, torcedor apaixonado do Corinthians. Por várias vezes, eu os vi nesses embates de palpites, como aconteceu num jogo entre Fortaleza e Corinthians realizado na capital cearense:

— Furtaleza e Curíntia. Quem você acha que ganha, Zezinho? — perguntou meu pai numa evidente provocação.

— Curíntia, já cravei seco – e continuava a discutir os demais jogos e ainda argumentava favoravelmente quanto ao palpite do amigo, mas logo em seguida mudava de ideia:

— É! O Curíntia não vai sair de São Paulo, viajar quase dois mil quilômetros pra perder pro Furtaleza. O Furtaleza também não vai querer fazer feio em casa diante de sua torcida. Esse jogo... num sei, não, viu, Zezinho, tá cheirando mesmo é um empate. O quê que você acha?

— Que empate que nada, Tiãozim, vai dá é Curingão na cabeça. E você ainda tem dúvida, moço?

— Tenho, sim. Tô achando que esse Furtaleza vai endurecer jogo, vai querer fazer bonito, mostrar que é bom de bola também. Eu tô achando que vai dá é Furtaleza na cabeça. Tá é com cara de Furtaleza!

— Cê vai é perder seu ponto, isso sim – e encerravam por hora o lotérico bate-papo.

Na segunda-feira, logo de manhã bem cedo, ainda mais se o Corinthians tenha saído vencedor, lá estava Zé Braga na porta da tenda do filho de Adnyl de Celina, ou seja, Tião Sapateiro:

— E aí, Tiãozim, fez quantos pontos?

— Só fiz 10. E você?

— Também fiz 10. Mas cê perdeu o ponto do Curíntia, num perdeu?

— Perdi nada, Zezinho, botei foi um triplo por garantia — e aí já começavam a discutir os jogos do próximo fim de semana. E assim, a vida de jogadores da Loteca seguia, tranquilamente, sem nenhuma pressa, a acompanhar a rotina de cidadezinha do interior.

Quanto a mim, não era muito diferente assim. Se o Tricolor Carioca estivesse em algum jogo, ele logo perguntava meu palpite, tendencioso, ele sabia. Dizia que eu era puxa-saco do Fluminense:

— O Fluminense vai pegar o Moto Clube lá no Rio. Cumé que tá ele? Será que ele ganha?

Na condição de torcedor ou puxa-saco, segundo ele, fazia minha análise naturalmente passional e lhe afirmava que o tricolor ganharia. Ele também não me contradizia. E me perguntava sobre outros times, se eu sabia como andavam. Eu dava lá meus palpites e ficávamos ali conversando. Eventualmente, diante de uma derrota do Tricolor, considerada imprevista, desacorçoado, eu lhe questionava:

— E aí, perdeu o ponto do Fluminense, num foi? Que zebra disgramada foi aquela! 

A Zebrinha (vide Referências).
— Perdi nada. Esses trastes lá do Rio gostam de fazer isso. Já tô acostumado com eles. Gostam de perder pra esses timecos cabo de taca, meia-pataca. Botei logo foi um duque aberto pra garantir. 

Na linguagem dos amantes da Esportiva, “duque aberto” é o prognóstico duplo no qual o apostador marca dois resultados no mesmo jogo, nesse caso especial, assinalam vitória dos dois times, colunas 1 e 2, por isso chamam de aberto. Deixam de marcar a coluna do meio, indicativa de empate.

Futebol sempre foi a alegria do meu pai, gostava de ver qualquer jogo pela televisão, por isso resolvi trazê-lo a Salvador para assistir a um jogo da Copa do Mundo de 2014. Naquele ano, ele já havia sofrido um AVC isquêmico, que lhe afetou o lado direito do corpo, mas a mente continuou bem ativa, aparentemente, sem sequela.

Embora não alimentasse paixão clubística, torcia pela Seleção Brasileira e tinha notória admiração por Garrincha, Rivelino e Ronaldo Fenômeno. Discretamente, vibrava quando o Fluminense vencia e dizia para minha mãe que era “pra Novais num ficar triste”. No entanto, numa eventual derrota, dizia a ela que eu “estava urrando em Salvador”, ou com “os dentes no quarador”, em caso de vitória, o que quase sempre virava motivo para minha mãe telefonar e contar-me a fuxicaiada do jogo, como diz ela.

Num particular, notadamente em Copas, sempre o via torcer ardorosamente pela Seleção do Japão, o que me aguçou a curiosidade e lhe perguntei, certa vez:

— Porque o senhor torce tanto pelo Japão? Virou japonês, foi?

— Quando fui para São Paulo, nos anos 1950, trabalhei numa sapataria de uns japoneses, que ficaram meus amigos. Todo fim de semana, eles me levavam para suas casas e, pela primeira vez na vida, eu vi comemorar meu aniversário. É um povo muito bom, gosto muito, honesto, humilde e inteligente.

Tião Sapateiro entre seus amigos em São Paulo. Década de 1950.

Meu pai foi para São Paulo ainda muito jovem. Morou em Marília, Garça e Franca, grande polo calçadista, onde aprimorou sua arte de sapateiro e se tornou modelista de calçados femininos. Em Santa Maria, num primeiro momento, foi seleiro, como era seu pai. Ao retornar daquele Estado, continuou a exercer o ofício de sapateiro, principalmente, a fazer botinas, bozerguins (bruzegos), “precatas salga-bunda”, chuteiras, sandálias e botas femininas. E ainda tinha um curtume na Sambaíba, o mais antigo bairro santa-mariense, às margens do Rio Corrente. 

De retorno ao futebol, assistimos, eu, ele, Lara, Glécia e Thiago, ao jogo da Copa 2014, Bósnia-Herzegovina e Irã, na Arena Fonte Nova. Ficou encantado. Pediu até para tirar foto com grandalhões torcedores iranianos, coisa rara, pois não era muito afeito a fotografia. E ainda comentou: “é cada cepa de homem”. E o mais surpreendente, até ola ele fez no estádio, já que era bem tímido, e ainda me chamava atenção: “lá vem a capadoçagem levantando, lá vem, lá vem, prepare”.

Mesmo depois do AVC, continuou a fazer seu “jogo simples”, isto é, o de valor mínimo, da Loteca. Ele mesmo ia à Casa Lotérica pagar a aposta. Como tinha mais de 80 anos, ainda “tirava onda” com quem estivesse aguardando nas filas, dizendo que iria “furar a fila”, o que era recebido com naturalidade pelas demais pessoas, visto que o caixa, quando o via, sem demora lhe chamava.

Numa dessas ocasiões, coincidentemente minha irmã Glécia foi pagar alguma conta na mesma Lotérica e o encontrou na fila. Ela não se fez notar e ficou logo atrás dele. De repente, alguém puxou conversar com ele:

— E aí, Seu Tião, fazendo uma fezinha na Loteca, né?

— É, eu tô aqui tentando a sorte. Eu já disse lá em casa, pode faltar dinheiro pra tudo, até pra comida, mas para meu jogo, não. Jandira sabe disso.

Glécia ouviu tudo aquilo, porém não se deixou notar para ele não ficar sem graça, pois ela sabia, como todos nós, demais filhos e esposa, sabemos de que se tratasse de simples brincadeira, porque ele foi um pai que nunca deixou faltar nada em casa, mesmo a viver de sua pequena sapataria. Sempre procurou nos dar os melhores exemplos de honestidade e humildade. Nunca gostou da arrogância ou da soberba, palavra muito usada por ele, e costumeiramente nos repetia isso.

Sites pesquisados:

Atualização monetária. Disponível em: <https://calculoexato.com.br/result.aspx?codMenu=FinanAtualizaIndice&cce=001>. Acesso em: 22 jul. 2020.

Boiadeiro Miron. Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/boiadeiro-miron-de-goias-fica-milionario-com-premio-da-loteria-esportiva-em-1975-10712142#:~:text=Criada%20em%2027%20de%20maio,lot%C3%A9ricas%20e%20revelou%20muitos%20sortudos>. Acesso em: 22 jul. 2020.

Cruzeiro (moeda)
. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzeiro_(moeda)#:~:text=O%20Cruzeiro%20(Cr%24)%20foi,cruzeiro%20equivalia%20a%20mil%20r%C3%A9is>. Acesso em: 29 jul. 2020.

História da Loteca. Disponível em: <https://ganharnaloteria.com/blog/historia-da-loteca/#:~:text=In%C3%ADcio%20da%20Hist%C3%B3ria%20da%20Loteca&text=Sua%20primeira%20rodada%20experimental%20aconteceu,de%20100%20mil%20bilhetes%20distribu%C3%ADdos>. Acesso em: 22 jul. 2020.

Loteca: resultado do concurso 893. Disponível em: <http://loterias.caixa.gov.br/wps/portal/loterias/landing/loteca/>. Acesso em: 27/7/2020.

Os 50 anos da Loteria Esportiva: a origem da zebra e máfia dos resultados. Disponível em: <http://bnldata.com.br/os-50-anos-da-loteria-esportiva-a-origem-da-zebra-e-mafia-dos-resultados/>. Acesso em: 26/7/2020.

Imagens utilizadas:

Concurso nº. 1. Disponível em: <https://agenciach.com.br/wp-content/uploads/2019/04/Loteria-esportiva-teste-1.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.

Concurso nº. 54. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/volante-da-loteria-esportiva-concurso-54-D_NQ_NP_826059-MLB29857815011_042019-F.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.

Concurso nº 55. Cartão perfurado. Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/volante-da-loteria-esportiva-concurso-54-D_NQ_NP_826059-MLB29857815011_042019-F.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.

O Coringão no Futebol nº. 253Disponível em: <https://http2.mlstatic.com/o-curingo-no-futebol-253-loteria-esportiva-1975-D_NQ_NP_220901-MLB20445463982_102015-F.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.

Volante da Loteca atual. Disponível em: <https://br.doctorlotto.com/wp-content/uploads/2019/05/volante-loteca-cartela-1024x862.jpg>. Acesso em: 23 jul. 2020.

ZebrinhaDisponível em: <https://i2.wp.com/www.sitefutebol.com.br/wp-content/uploads/2017/07/ZEBRINHA.jpg?fit=389%2C285&ssl=1&w=640>. Acesso em: 23 jul. 2020.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...