sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Tertúlia flácida para acalentar bovídeo

Não é a intenção desta crônica testar o vocabulário do leitor, longe disso, mas você sabe o que vem a ser um sujeito indobeclível? E uma pessoa sub-relevapes, o que será, afinal de contas?

Certamente não sabe e jamais saberá. Dicionarista algum registrou estes termos. Mas eles existem. Não têm sinônimos. São adjetivos comuns aos dois gêneros. Servem tanto para elogiar quanto para desqualificar alguém. São “paus pra toda obra,” no prolóquio popular mais adequado.

Esta é uma das facetas da nossa Língua Portuguesa: idioma de origem românica, filha benquista do Lácio, a brindar-nos um horizonte de belas palavras. Peca, talvez, por não ser tão técnica e objetiva como o Inglês ou Alemão, por exemplo. Ganha, porém, em sonoridade e plasticidade só comparável a outras línguas de origem latina. Poucos são os privilegiados que a manejam com delicadeza e arte ao deixarem fluir frases grandiloquentes que ecoam como canção de ninar.

É o que acontece, por exemplo, com aquele preciosista incorrigível que, a propósito de comentários sobre eclipse, esnobou a perífrase vernacular: “na pretérita centúria, meu progenitor presenciou o acasalamento do Astro-Rei com a Rainha da Noite”, em vez de simplesmente dizer: “no século passado, meu avô viu o eclipse solar”.

Quando esse mesmo amante-complicador do óbvio e simples chega a um boteco e pede que lhe sirvam “uma solução aquosa de rubiácea”, em lugar do apreciado cafezinho. Se deseja haurir uma cervejinha, suplica “um fermentado gélido de Hordeum vulgare”.

O mesmo refinado e preciosista cidadão não poupa sequer nosso líquido universal — a água. Uma vez sedento, para pedir um simples gole de água, solicita um copo de “protóxido de hidrogênio”, o que nos remete às aulas de Química Inorgânica dos tempos estudantis.

Certa vez, envolvido em discussão que não lhe convinha, exatamente aqueles bate-bocas que não chegam a lugar algum, como diríamos: “conversa mole para boi dormir” ou “tertúlia plácida para levar bovídeo aos braços de Morfeu”, vociferou: “vamos parar com esse colóquio flácido para acalentar bovino”. E até mesmo para referir-se à batida frase “cada macaco no seu galho”, ele prefere o circunlóquio: “cada símio na ramificação arbórea que lhe compete”. Que chique, não é?!

Boi dormindo. Jão. 2021.
Outros, entrementes, à margem das belezas do nosso vernáculo, entretanto admiradores dos bons falantes, chegam a criar palavras, mergulham fundo em neologismos e deixam boquiaberto a quem flagrasse, por exemplo, Baiano e Sinhô simularem uma contenda.

— Sinhô, você não presta. Você não passa de um safado sub-relevapes.

— E você, Baiano? Você é um pé-inchado subsindiques, um pau-d’água-de-marca-maior, isto sim!

— Sabe de uma coisa: vamos parar com isso. Vamos deixar de muita renoclênia, porque o que somos mesmo é um bando de intratapes — finalizou o sempre magníloquo Baiano.

Bem cedo eles se foram. Adejaram céleres, num atro dia, para um mundo inconcebível e incognoscível, lugar, por certo, onde sua linguagem louçã e enigmática encontrará ouvidos que melhor os entenderão.

Baiano, depois de uma noitada etílica, afogou-se nas águas do Rio Corrente, em Santa Maria da Vitória, no rosicler da manhã. Enquanto Sinhô, sorumbático e inconsolável, apartado abruptamente do inseparável amigo, despediu do mundo — também afogado — no mesmo aziago dia, à tarde. E lá se foram os amigos indobeclíveis e sub-relevapes, vítimas da dipsomania.

Salvador do Mercado, folgazão e piadista contumaz, num piscar de olhos, fez verdadeira a máxima popular quando se refere à amizade sincera e despretensiosa:

— Isso é que são amigos! Até debaixo d’água!

Finalmente, somente para deleite, apreciemos o soneto por título “A uma deusa (O quelso)”, atribuído ao poeta maranhense Luís Lisboa, em que ele usa e abusa de neologismos e bestialógicos, quase sempre por força de rimas ou diversão mesmo:

Tu és o quelso do pental ganírio,
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólio do bocal empírio
Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomogenério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,
De lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbânceas do pental perônio.

Viram só! Inventar palavras não é privilégio apenas de Baiano e Sinhô. Gente letrada também gosta de falar difícil e muitas vezes nada dizem. Gente sabida também pode ser vaniloquente.


A propósito, os termos rebuscados utilizados nesta crônica, raramente ouvidos no falar cotidiano, foram a forma encontrada de deixá-la de acordo com as perífrases, sobretudo lembrar Baiano e Sinhô, e não derramar inutilmente palavras difíceis para demonstrar falsa erudição.

Referências:

CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 4. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ediouro, 1989. 180p. (vide soneto “A uma deusa ou O quelso”, de Luís Lisboa, p. 30).

COLLETI, Cesar. Poesia a uma deus. Jornal da Franca. Ano 6, n. 2137. Disponível em: <https://www.jornaldafranca.com.br/poesia-a-uma-deusa/>. Acesso em: 6 set. 2021.

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Ed. do Autor, 2009. 164p. (vide crônica Tertúlia plácida para acalentar bovídeo, p. 153).

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