sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Na sala de aula - A história de Chico Muleta

Os anos já se vão bem distantes, corria a década de 1970, quando este que escreve ingressou no Curso Ginasial, precisamente em 1971, depois de fazer o temido Exame de Admissão, uma espécie de vestibular do Curso Primário. Nesta época, também, só se falava no Mobral, o Movimento Brasileiro de Alfabetização, e no Ensino Supletivo, algo semelhante ao atual EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Normalmente, as turmas desses cursos funcionavam à noite e eram formadas de alunos oriundos da zona rural, também citadinos, trabalhadores braçais, empregadas domésticas, muitos idosos, aposentados ou não, todos com objetivos comuns: aprender a ler, escrever e fazer as quatro operações matemáticas, almejando tirar o título de eleitor e, alguns, seguir nos estudos, uma vez que, certamente, não tiveram oportunidade devido a seus afazeres e/ou mesmo a falta de escolas.

Francisco José era um desses alunos, vindo da roça, já sabia ler e escrever, que aprendeu no Mobral, e pretendia seguir estudando, estava matriculado em uma turma do Supletivo do Primeiro Grau. Estudante interessado e participativo, sentava nas primeiras filas e gozava do privilégio de ser primo do professor de Ciências, Ramon Mattos, que também lecionava nas turmas iniciais do Ginásio da cidade. Ali, ele o fazia por diletantismo e gratuitamente, pelo simples prazer de ajudar.

Em uma das aulas do professor Mattos, muito querido da turma, gostava de brincar com seus alunos, ele falava sobre a composição da matéria, e não se apartava do seu livro predileto, Iniciação Científica – Ciências Físicas e Biológicas, de Marques e Sartori, tinha os três volumes dos autores.

Foto: Novais Neto. Acervo do autor.
– Toda matéria é formada de pequeninas unidades que chamamos átomo. Estes átomos se juntam e formam as moléculas, que se reúnem novamente, e vão constituir as mais variadas matérias. O átomo é algo bem pequeno, inimaginável até, só visto através de potentes microscópios eletrônicos.

– P’sor, ele é assim, vamos dizer, do tamanho de uma semente de milho alpiste? – quis saber Francisco.

– Oxente, Francisco, é bem menor ainda. Imagine a cabeça de um alfinete. Divida-o em dez partes, por exemplo. Pegue uma destas partes. É difícil, não é? Só com uma lente de aumento daria para ver. Pois bem, a molécula, que é formada de átomos, é algo ainda menor. Não dá pra ver mesmo!

— Mas, home quá! Então essa tal de molécula nem existe. É pura carga d’água só mesmo pra entupir o miolo da gente com tanta bestajada – contestou o incrédulo Francisco.

Molécula da água. Foto: Reprodução / Internet (vide link).
– Existe, Francisco. Os cientistas já conseguiram até provar que o átomo (que significa não divisível) é constituído, na verdade, de partículas bem menores ainda chamadas prótons, nêutrons e elétrons. Vá por mim, Francisco. Os átomos, as moléculas existem e estão aí por toda parte. Eles são uns fanisquinhos de nada mesmo, é verdade, mas existem, sim, embora não sejam vistos a olho nu.

— Oxente, p’sor, olho nu?! E olho veste roupa?! — para delírio de seus colegas.

— Olho nu, Francisco, é uma maneira de dizer. É quando a gente observa uma coisa sem precisar de auxílio de algum instrumento para aumentar o tamanho dela, assim, por exemplo: uma formiga, por menor que seja, a gente consegue ver, mas se for menor que uma formiga, aí já fica difícil, né. Então, pegamos uma lente de aumento, dessas que os meninos colocam contra a luz do Sol, para acender baga de cigarro, queimar papel, e aí conseguimos ver coisas bem miúdas. O microscópio eletrônico, Francisco, aumenta o tamanho dos objetos milhões de vezes, e aí se pode ver até mesmo um átomo — concluiu enfaticamente o competente mestre.

Francisco acenou positivamente com a cabeça, dando a ver que havia entendido. Se verdadeiramente eles se convenceu disso, não é algo tão certo assim. E o dedicado professor continuou a falar de molécula: molécula para cá, molécula para acolá e Francisco “viajava no mundo da Lua”. Lá pelas tantas, parece que houve um reboliço na cachimônia do pobre aluno e o simplório saiu-se com esta:

– Ô, p’sor, essa tal de molécula é aquele negócio que aleijado bota debaixo do sovaco?

– Claro que não, meu querido primo Francisco! Aquilo é muleta, algo completamente diferente, mas tem uma coisa em comum entre ambas: ela também é constituída por moléculas. Entendeu, meu amado mancebo? — finalizou o mestre, fazendo enorme esforço para conter o riso insistente.

– E eu sei lá, p'sor! Agora foi que disgramou tudo no meu coco, num entendi foi patavina de nada – indignou-se o esforçado Francisco José, que passou doravante a ser chamado de Chico Muleta, por seus colegas e, depois, por toda cidade, mas ele, Francisco José, nem se importava com isso. Sorria apenas!

Referências:

MARQUES, João Queiroz; SARTORI, José Antônio. Iniciação científica: ciências físicas e biológicas, v. 3, 7. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

MOLÉCULA DA ÁGUA. Disponível em: <https://pt-static.z-dn.net/files/de8/638ef361867198285fcf9664419458c3.png>. Acesso em: 12 out. 2022.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...