sexta-feira, 4 de março de 2022

Fim de um casamento por causa de uma muriçoca

— Menino, menino, casamento é coisa séria. Casamento não é caçoada. Comer sal no mesmo prato é uma missão muito difícil. Tem que ter muita compreensão, tem que ter muito gostar, tem que perdoar sempre. Eu num sei, não — fez breve pausa e continuou o aconselhamento:

— Só porque já nasceu penugem na cara, engrossou o cangote, tá ficano taludo, mudou o papo ainda ontem e já acha que é homem, pensa que já pode dar dicumê uma famia. Num sei, não, meu fii. E ela quem nem muié inteira é, encheu a blusinha isturdia... É... Sei não! ­— concluiu por hora.

Era sempre assim: todo dia Nezim ouvia a mesma ladainha. Dona Mariinha lia inteirinho o bê-á-bá, porém o namorado de Ninha não arredava pé da ideia de casamento. Tampouco se enfunava com a falação da mãinha protetora. Estava decidido. Casaria, sim, dia 25 de dezembro, aniversário da bem-amada, mesmo que se campasse depois.

Dona Mariinha ainda dizia, para arrematar a conversa:

— Oh, meu fii, tô falano tudo isso, mas não se zangue comigo, não. Não sou contra o seu casamento, só acho que ocês são muito novinho. Além do mais, ocê é cheio de veneta, inganjento, e ficar o tempo todo de junto um do zonzoto é muito difícil. Forante isso, se decidirem se casar mesmo, têm a minha “benção”.

E se casaram. No princípio, tudo ia muito bem, obrigado. E continuou assim por bons dois anos e meio. Sem filho, o casal sempre ia à Barra do São José curtir o Rio Corrente ou em algum povoado para quebrar a rotina semanal. Isso os mantinha como bons namorados e eternos amantes.

E veio um menino. Aí começaram os problemas... e desde o início, a partir do nome a ser dado ao pimpolho. Ele, torcedor do Botafogo, queria botar o nome Nilson, em homenagem a Nilson Dias, antigo atacante da Estrela Solitária nos anos 1970. Ela, fanática pelo Mengão, queria pôr Artur, prenome de Zico. E não arredaram pé de suas posições. O óbvio prevaleceu: o menino virou Artur Nilson. Pode?!

Nezim trabalhava em um banco. Bom funcionário, dedicado. Gostava de sorver umas cervejinhas às sextas-feiras depois dos extenuantes expedientes bancários. Nada de exagero, só mesmo para “molhar a palavra” num bate-papo com os amigos ora do banco ora do futebol. Só que isso virou rotina e ele começou a chegar em casa altas horas da noite, dando início a intermináveis discussões que, invariavelmente, terminavam com aquele bancário dormindo no sofá ou na casa de dona Mariinha.

Num desses tendepás, Nezim, muito chateado e sem querer mais discutir, resolveu arrumar a matula e se mandou para a casa da sempre acolhedora mãinha. Nada que parecesse definitivo. Afinal, já havia tomado esse caminho inúmeras vezes. Já tornara rotina.

Desta vez, no entanto, antes de sair, Nezim entrou no quarto para ver Nilsim e dar-lhe um beijo. Nilsim para ele, para a mãe era Arturzim. No berço, ele deparou com uma cena corriqueira naquela casa: uma enorme muriçoca-de-cavalo a sobrevoar. E esta foi pousar bem na testa de Nilsim, que dormia. Ele nem pestanejou e tomou decisão impensada: deu um tapa na testa do filho para matar o horripilante inseto. O artrópode voou incólume, mas o menino acordou assustado, aos berros.

Muriçoca-de-cavalo e mão de Hermes Novais. Foto: Novais Neto. 1996.
Ninha entrou no quarto, espavorida. Ela não viu o acontecido, só que ele, Nezim, como não teve intenção de maltratar na criança, contou toda a verdade, tintim por tintim, sem hesitar, mas Ninha não acreditou em nada do que ouviu. Tinha certeza de que se tratou de uma covarde vingança contra um inocente e o pôs para fora de casa embaixo de sucessivas vassouradas no esquelético dorso. Sem dó nem piedade. E o conúbio, que já parecia haver durado muito, chegou inevitavelmente ao último capítulo.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...