sábado, 31 de outubro de 2020

Crônica dos esquecidos

O esquecimento e as inevitáveis consequências são quase sempre desagradáveis, mas há também as risíveis. Confiram e divirtam-se.

Quem de nós, em algum momento, não foi vítima do próprio esquecimento? Ou não conheça alguém ou tenha alguma história de esquecimento? Ou ainda tenha esquecido algo em algum lugar ou mesmo um compromisso? Creio que a resposta — salvo exceções — deva ser afirmativa para estes questionamentos. Fica claro, portanto, que, quando falo em esquecidos, não me refiro aos não lembrados, mas àqueles que já tenham se esquecido em alguma ocasião.

Justamente por conta do esquecimento, tão próprio do ser humano, é que existem em aeroportos, rodoviárias, locais públicos e até mesmo em jornais as seções de “achados e perdidos”. Nestes espaços se encontram de tudo, de uma cédula de identidade a objetos maiores; de muletas a dentaduras, como noticiado por determinado canal de TV, no metrô de São Paulo. Só não dá para acreditar que as muletas foram esquecidas pelo próprio usuário, a menos que tenha sido beneficiado por um milagre repentino ou algum 
delinquente se disfarçando de deficiente físico.

Quando se fala, portanto, de esquecimento, há episódios famosos, como do físico teórico alemão Albert Einstein, que “esqueceu” um cheque de mil e quinhentos dólares dentro de um de seus livros de estudo servindo como marcador de página, encontrado depois por uma empregada dele. Não se crê, entretanto, que tenha sido esquecimento, porém demonstração de indiferença que o gênio tinha por dinheiro. Por esta razão é que aspeei o verbo “esqueceu” no início deste parágrafo.

O Pensamento Vivo de Einstein. Martin Claret Editores, 1986. Acervo e foto: Novais Neto.
Quanto aos esquecidos anônimos, estes, sim, há uma infinidade, cada um com sua história particular. O autor desta crônica é um deles. Normalmente, graças a Deus, não costumo esquecer-me de algo que venha me trazer tanto transtorno, porque sempre me previno: anoto o que for mais importante. Mas esqueço. E muito. E quando isso acontece e é no trabalho, ao ligar par
a algum colega, que já me conhece bem, a resposta vem automática:

— Já vi e já guardei. Não se preocupe!

Certa ocasião, quando morava na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, cheguei mais cedo da faculdade e o almoço ainda não estava pronto. Cansado de esperar, acabei dormindo e só fui acordar lá para as três horas da tarde. Como costuma dizer minha mãe que sono alimenta, acordei sem fome, me arrumei e fui para o trabalho no Baneb, que começava às 16 horas. Quando lá cheguei e comecei meu batente, veio-me uma fome em hora pouco comum, inesperada. Só aí então é que caí na realidade: havia esquecido de almoçar. Imaginem! Ninguém acreditou. E virou motivo de gozação.

Este, em verdade, não é esquecimento comum, como também não é (será mesmo?) o de que foi vítima meu conterrâneo Tõi de Palu. Meu amigo é casado com a professora Sara e pai de três filhos. Toda manhã, quando as crianças ainda eram pequenas, ele saía para comprar pão e, eventualmente, levava uma delas. Determinada vez, depois de cumprir seu dever matinal, e já em casa, Sara o interpela:

— Tõi, cadê Raizinho?

— E eu sei lá, Sara. Quem sabe é você.

— Oxente, homem, cê num saiu com ele pra comprar pão?

— Vixe Maria! foi mesmo. Esqueci o menino na padaria — voltou correndo e o encontrou “guardadinho”, sentado numa cadeira, esperando pelo pai esquecido, na dele.

De todas as histórias de esquecimento que já me contaram, a de Fernando e Fernanda merece “cuidados médicos”. Os dois, certa feita, foram visitar um casal de amigos que não via, há pelo menos dois anos. Na última vez em que haviam encontrado, a esposa do seu amigo estava grávida, como também Fernanda, mulher de Fernando. Depois disso, marcaram e desmarcaram vários encontros e os filhos, aliás, as meninas, só cresciam. Até que não puderam mais cancelar o tão prometido e esperando encontro que — finalmente — iria acontecer.

E lá foram eles passar um descontraído domingo com o casal amigo: Fernando, Fernanda, o filho Matheus, um menino traquina de 9 anos, e Manuela, com pouco mais de 2 anos de idade, que ele queria que se chamasse Ferdinanda, mas a mãe, dona Nenzinha, na sabedoria dos seus 93 anos de idade, demoveu-o da ideia que contrapunha a da esposa, para evitar algum desentendimento.

Ao chegar à casa dos amigos, foram recebidos entusiasticamente por um poodle branquinho, saltitante e barulhento. Manuela, a Manu, como é tratada, com medo, procurou proteção paterna, saltando nos braços de Fernando. De repente, surge a filha do casal, uma danada menininha da mesma idade de Manu a correr alegremente atrás do irrequieto cãozinho, e Fernando exclama, maravilhado:

— Fernanda, olha como Vanessa está grandona! Tá maior que Manu. E por falar nisso, Fernanda, cadê Manu, será que ficou lá dentro do carro? Vai lá pegar ela depressa, mulher, pra ela conhecer Vanessa.

— Pegar o que, Nando? Assunta direito, homem de Deus, ó a menina aí nos seus braços. Tá ficando doido, é? Eta! marido esquecido, meu Deus! Quem guenta com isso, gente?! 

Depois dessa, claro, tudo terminou numa gostosa gargalhada e infindáveis gozações. De uma coisa, no entanto, ficou uma certeza: deste episódio Fernando nunca vai se esquecer. Será mesmo?

Referência:

CLARET, Martin (Coord.). O pensamento vivo de Einstein. 5. ed. v. 1. São Paulo (SP): Martin Claret Editores, 1986. p. 101. 110 p. (Coleção O Pensamento Vivo).

sábado, 17 de outubro de 2020

Quando Bob Dylan me salvou

A vida, em seus momentos mais singulares, nos oferece boas lições e muitas risadas para fazê-la ainda mais bonita. Basta, para isso, olhar em volta de si mesmo. Confiram.

Desde que saí da Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória no ano de 1984, que ficava na Rua do Amparo, no Tororó, para vir morar no Engenho Velho de Brotas, meu apartamento virou uma verdadeira casa de acolhimento. Vários conterrâneos e amigos de Brasília, Goiânia e outras cidades para ele acorriam, principalmente em período de férias, o que era muito bom, pois assim eu ficava atualizado das notícias e dos fuxicos os mais variados. Vivia sempre conectado.

Um dos amigos mais assíduos era Miro do SAAE (Serviço Autônomo de Águas e Esgotos), figura de simplicidade franciscana e paciência de Jó. Sua voz é quase inaudível, de tão baixa que é. Numa de suas visitas, ele chegou bem cedinho e eu fui buscá-lo na Rodoviária. Já no apartamento, Miro foi tomar banho e eu botei um “bolachão” de Alceu Valença no toca-discos. 

Nesse ínterim, por brincadeira (inoportuna), travei a porta do banheiro por fora e acabei me esquecendo de destravar. Ficamos, eu e Vandinho de Agostinho Relojoeiro, que também morava no mesmo apartamento, por ali a conversar e a ouvir músicas. Só fui perceber o malfeito, quando tive que mudar o lado o disco e uma voz baixinha, acompanhada de suaves batidas na porta, mais que implorava: 

— Abre isso aqui, moço, pel’amor de Deus! Já terminei de banhar. 

A cena foi tragicômica: Miro, todo suado, com a toalha nas costas, ainda completou sua reclamação com a maior paciência do mundo. E sem altear a voz: 

— Vocês são uns bons sacanas. Brincadeira mais besta esta! — e sorriu, simplesmente. 

Outro que quase sempre nos visitava era Inocêncio Moura, ex-colega secundarista e amigo dos bons. Inocêncio é da Igreja Batista e tem conversas muito interessantes. É casado com Sílvia, prima de Aldevan. Para quem não sabe, Aldevan é o mesmo Vandinho de Mariazinha de Agostinho Relojoeiro de Zé de Santino Fogueteiro de Sinhá Calu, segundo ele próprio, para evitar possível homonímia, já que em Santa Maria há uma cacetada de Vandinho. 

Numa das visitas de Inocêncio, liguei o aparelho 3 em 1 e pus uma música qualquer para servir de fundo ao nosso bate-papo. Isso era habitual. Meu gosto musical, aliás, não é dos mais acurados, não tive educação musical. Ouço “quase” tudo, umas músicas até de gosto duvidoso para os mais sofisticados e seletistas. Outras, até consideradas de bom gosto! Salve! Salve! 

E assim, enquanto meu amigo desarrumava a mala, coloquei no toca-disco o LP intitulado “Os amores de Silvinho”, na faixa “Mulher governanta”. Quando, em determinado momento, o ator Paulo Gracindo (1911–1995), cujo nome verdadeiro é Pelópidas Guimarães Brandão Gracindo, que encarnou o inesquecível Odorico Paraguaçu, da telenovela O Bem amado, do baiano Dias Gomes, em tom solene, declama:

Disco vinil (LP) Os amores de Silvinho. Acervo e foto do autor.


— E Deus fez a mulher. / Deus não a fez da cabeça do homem para que ela não se julgasse sua soberana. / Deus não a fez dos pés do homem, para que o homem não a fizesse sua escrava. / Deus fez a mulher da costela do homem, de uma costela bem perto de seu coração, para que ela fosse amada e amparada por ele. / A mulher não é rainha nem escrava, Deus a fez companheira do homem. 

Inocêncio, empolgado, aplaude o artista. E, cerimonioso, exclama: 

— O irmão aí conhece as Escrituras Sagradas. Amém! 

E vem a próxima música do mesmo disco. E Silvinho, sem cerimônia, dispara: 

— Esta noite eu queria que o mundo acabasse / E para o inferno o Senhor me mandasse / Para pagar todos os pecados meus [...]. 

E meu hóspede, em cima da bucha, contra-ataca, sisudo e indignado: 

— Não entendi foi mais nada. Há pouco instante o cidadão falava em Deus, agora já quer ir pro inferno. Vai lá entender esta humanidade, minha gente! 

Com sorriso meio choco, sem graça, tirei o disco e pus uma fita de um antigo comediante que meu amigo Inocêncio também conhece, Barnabé (José Ferreira de Melo, 1932–1968), paulista, da cidade de Botelhos. Artista de piadas caipiras, inocentes, cantor, que fez muito sucesso nos anos 1960 e 1970.

Nas cidadezinhas do interior, quando não havia chegado sinal de televisão, naquele período, era o que se ouvia, principalmente nas zonas rurais. Como ele fez parte da minha infância e de muitos contemporâneos, adquiri algumas fitas do festejado humorista. 

Fitas K7 Show de Graça, Barnabé. Acervo e foto do autor.


Numa dessas fitas K7, Barnabé narra uma historieta com fundo musical mal-assombrado, cujo personagem, amedrontado e acuado com a voz do capeta, apela: 

— Amém, Jesus! 

— Fecha a porta e apaga a luz — responde o tinhoso. 

— Meu Divino Esp’rito Santo!

— Eu, na beirada e a nega no canto — replica o demônio. 

Olhei para meu amigo Inocêncio que, solenemente protestou, por não gostar de nada do que ouviu: 

— Começou a brincar com coisa séria — reclamou, franziu o cenho e levantou-se. 

Imediatamente, para que nosso bate-papo prosseguisse em clima descontraído e ao mesmo tempo interessante e harmonioso como estava, botei lá no aparelho de som, o CD Desire, de Bob Dylan, que ouvíamos muito quando morei na Casa do Estudante de Santa Maria, e passamos a escutar o que de nada entendíamos, pelo menos no que diz respeito às letras das músicas em inglês. 

Compact Disc (CD) Desire, Bob Dylan. Acervo e foto do autor.
Meio sem jeito, com cara de menino atoleimado e medo de cometer mais uma gafe, sob o olhar enigmático e sorriso contido de Vandinho, o filho de Mariazinha, que parecia dizer-me: “toma, seu sem vergonha, oh! o que você queria”, imagino que tomei a decisão mais acertada, porque me senti aliviado e o bate-papo voltou a fluir solto, sem sobressaltos e animadamente, comendo ginete, bolo de arroz de Neide de Roque, bolo de milho frito no canto de panela de ferro e brevidade de Lelé, que Inocêncio houvera trazido da nossa amada Samavi, outrora também chamada Cidade Riso. Que maravilha! Verdadeiro brinde a Dionísio, o deus da comilança!

Obrigado, Dylan. (Desculpe-me, pela demasiada intimidade).

Sites consultados:

BARNABÉ. Barnabé Show de Graça Volume 4 Lado A. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sEL2-eoVqoU>. Acesso em: 15 out. 2020.

BOB DYLAN. Bob Dylan - 1976 - Desire. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sN50eDyIYF8>. Acesso em: 15 out. 2020.

SILVINHO. Mulher governanta. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Bm9BfDpaqdQ>. Acesso em: 15 out. 2020.


sábado, 3 de outubro de 2020

Papos risíveis sobre a morte

Falar sobre a morte nem sempre é um bom papo, por isso mesmo muito fogem dele, outros buscam frases ou termos correlatos para suavizá-la. Confiram.



Dia desses, a conversar com a arte-educadora e poetisa Ana Helena Bomfim por ocasião da partida do meu pai, Tião Sapateiro, em junho deste ano de 2020, lembrei-me de um bate-papo que tive com ele, dentre vários, quando me perguntou sobre seus contemporâneos que moram na zona rural do município ou em outra cidade, se ainda estavam vivos:

Novais Neto e Tião Sapateiro. Foto: Glécia Almeida. 2019.
— Cadê Gesulino Cabeça de Fosco fii de Mané Barrão, será que ainda tá vivo lá em Goiânia? 

— Não. Viajou pra cidade dos pés juntos, ano passado — respondi a usar o palavreado que lhe era tão próprio.

Raramente meu pai usava termos como morte, morrer, dizia viagem, viajar ou apelava para eufemismos ou frases equivalentes, quando àquelas palavras tivesse que se referir.

Após minha resposta, ele fez uma pausa, mirou perdidamente o tempo com olhos esverdeados, miúdos e, meditativo, prosseguiu:

— E Pêdo Saia Véa, filho de Zidorim Qué Sê cum Filipa Qui Mama, será que já viajou também?

— Empacotou. Abotoou o paletó de madeira, já faz é um tempão. 

— E Antõi Correto, lá das C’raíba? Tem notícia dele? 
— e elogiou o amigo. — Ali vi um sujeito direito, homem de palavra tava ali. 

— Pegou o chapéu da viagem também. Já faz um bocado de ano.

Ele fez mais um hiato, um pouco mais demorado. Olhou a rua, para cima e para baixo, contemplou o céu vespertino, desnuvioso, de intenso azul, como se antevisse inevitável futuro a aproximar-se dele sem que nada pudesse fazer, uma vez que seus amigos certamente nonagenários como ele, já haviam voltado para a Casa do Pai. E finalizou o desconfortável assunto sem com isso deixar de zombar da morte com indisfarçável e invulgar bom humor:

— É... esse povo parece que não tem o que fazer, só fica morrendo à toa feito besta — e mudamos de conversa.

Pelo dito, a viajar em minhas elucubrações, foi ele por certo que não teve mais nada a fazer entre os pobres mortais do Planeta Terra, e rumou para a Eternidade, onde provavelmente terá assuntos menos indigestos e não aziagos.

Na minha conversa com Ana Helena, por seu turno, a poetisa me contou que, ao acompanhar o féretro de Zé de Júlia Fogão, do Reis Guarany, pelas ruas santa-marienses, ficou a prestar assunto em um papo que rolava, tristemente, entre duas senhoras, bem velhinhas, que faziam o mesmo trajeto:

— Ei, cumade, se não fosse a morte, hein, essa vida era um vidão, num era?

— Era mermo, cumade. Mas aonde é qui Deus ia botar esse tanto véi? Diga aí, hein! 

— É mermo, cumade. Tem qui morrer mermo. Deus tá certim da silva!

Em tempo:

1) Alguns prenomes utilizados neste conto são fictícios, portanto, possíveis semelhanças com nomes reais terá sido fortuita coincidência. Quanto aos sobrenomes (apelidos), estes sim, são verdadeiros e eu costumava ouvi-los em conversas com meu pai, e muitos deles, conhecer seus detentores.

2) Ofereço este modesto conto ao poeta, músico, compositor e jornalista Aloísio Brandão, da coirmã cidade de Santana (BA), residente em Brasília (DF), como retribuição à sensibilíssima, poética e instigante postagem em minha página do Facebook por ocasião da partida de Tião Sapateiro. Obrigado, poeta!

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...