sábado, 17 de outubro de 2020

Quando Bob Dylan me salvou

A vida, em seus momentos mais singulares, nos oferece boas lições e muitas risadas para fazê-la ainda mais bonita. Basta, para isso, olhar em volta de si mesmo. Confiram.

Desde que saí da Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória no ano de 1984, que ficava na Rua do Amparo, no Tororó, para vir morar no Engenho Velho de Brotas, meu apartamento virou uma verdadeira casa de acolhimento. Vários conterrâneos e amigos de Brasília, Goiânia e outras cidades para ele acorriam, principalmente em período de férias, o que era muito bom, pois assim eu ficava atualizado das notícias e dos fuxicos os mais variados. Vivia sempre conectado.

Um dos amigos mais assíduos era Miro do SAAE (Serviço Autônomo de Águas e Esgotos), figura de simplicidade franciscana e paciência de Jó. Sua voz é quase inaudível, de tão baixa que é. Numa de suas visitas, ele chegou bem cedinho e eu fui buscá-lo na Rodoviária. Já no apartamento, Miro foi tomar banho e eu botei um “bolachão” de Alceu Valença no toca-discos. 

Nesse ínterim, por brincadeira (inoportuna), travei a porta do banheiro por fora e acabei me esquecendo de destravar. Ficamos, eu e Vandinho de Agostinho Relojoeiro, que também morava no mesmo apartamento, por ali a conversar e a ouvir músicas. Só fui perceber o malfeito, quando tive que mudar o lado o disco e uma voz baixinha, acompanhada de suaves batidas na porta, mais que implorava: 

— Abre isso aqui, moço, pel’amor de Deus! Já terminei de banhar. 

A cena foi tragicômica: Miro, todo suado, com a toalha nas costas, ainda completou sua reclamação com a maior paciência do mundo. E sem altear a voz: 

— Vocês são uns bons sacanas. Brincadeira mais besta esta! — e sorriu, simplesmente. 

Outro que quase sempre nos visitava era Inocêncio Moura, ex-colega secundarista e amigo dos bons. Inocêncio é da Igreja Batista e tem conversas muito interessantes. É casado com Sílvia, prima de Aldevan. Para quem não sabe, Aldevan é o mesmo Vandinho de Mariazinha de Agostinho Relojoeiro de Zé de Santino Fogueteiro de Sinhá Calu, segundo ele próprio, para evitar possível homonímia, já que em Santa Maria há uma cacetada de Vandinho. 

Numa das visitas de Inocêncio, liguei o aparelho 3 em 1 e pus uma música qualquer para servir de fundo ao nosso bate-papo. Isso era habitual. Meu gosto musical, aliás, não é dos mais acurados, não tive educação musical. Ouço “quase” tudo, umas músicas até de gosto duvidoso para os mais sofisticados e seletistas. Outras, até consideradas de bom gosto! Salve! Salve! 

E assim, enquanto meu amigo desarrumava a mala, coloquei no toca-disco o LP intitulado “Os amores de Silvinho”, na faixa “Mulher governanta”. Quando, em determinado momento, o ator Paulo Gracindo (1911–1995), cujo nome verdadeiro é Pelópidas Guimarães Brandão Gracindo, que encarnou o inesquecível Odorico Paraguaçu, da telenovela O Bem amado, do baiano Dias Gomes, em tom solene, declama:

Disco vinil (LP) Os amores de Silvinho. Acervo e foto do autor.


— E Deus fez a mulher. / Deus não a fez da cabeça do homem para que ela não se julgasse sua soberana. / Deus não a fez dos pés do homem, para que o homem não a fizesse sua escrava. / Deus fez a mulher da costela do homem, de uma costela bem perto de seu coração, para que ela fosse amada e amparada por ele. / A mulher não é rainha nem escrava, Deus a fez companheira do homem. 

Inocêncio, empolgado, aplaude o artista. E, cerimonioso, exclama: 

— O irmão aí conhece as Escrituras Sagradas. Amém! 

E vem a próxima música do mesmo disco. E Silvinho, sem cerimônia, dispara: 

— Esta noite eu queria que o mundo acabasse / E para o inferno o Senhor me mandasse / Para pagar todos os pecados meus [...]. 

E meu hóspede, em cima da bucha, contra-ataca, sisudo e indignado: 

— Não entendi foi mais nada. Há pouco instante o cidadão falava em Deus, agora já quer ir pro inferno. Vai lá entender esta humanidade, minha gente! 

Com sorriso meio choco, sem graça, tirei o disco e pus uma fita de um antigo comediante que meu amigo Inocêncio também conhece, Barnabé (José Ferreira de Melo, 1932–1968), paulista, da cidade de Botelhos. Artista de piadas caipiras, inocentes, cantor, que fez muito sucesso nos anos 1960 e 1970.

Nas cidadezinhas do interior, quando não havia chegado sinal de televisão, naquele período, era o que se ouvia, principalmente nas zonas rurais. Como ele fez parte da minha infância e de muitos contemporâneos, adquiri algumas fitas do festejado humorista. 

Fitas K7 Show de Graça, Barnabé. Acervo e foto do autor.


Numa dessas fitas K7, Barnabé narra uma historieta com fundo musical mal-assombrado, cujo personagem, amedrontado e acuado com a voz do capeta, apela: 

— Amém, Jesus! 

— Fecha a porta e apaga a luz — responde o tinhoso. 

— Meu Divino Esp’rito Santo!

— Eu, na beirada e a nega no canto — replica o demônio. 

Olhei para meu amigo Inocêncio que, solenemente protestou, por não gostar de nada do que ouviu: 

— Começou a brincar com coisa séria — reclamou, franziu o cenho e levantou-se. 

Imediatamente, para que nosso bate-papo prosseguisse em clima descontraído e ao mesmo tempo interessante e harmonioso como estava, botei lá no aparelho de som, o CD Desire, de Bob Dylan, que ouvíamos muito quando morei na Casa do Estudante de Santa Maria, e passamos a escutar o que de nada entendíamos, pelo menos no que diz respeito às letras das músicas em inglês. 

Compact Disc (CD) Desire, Bob Dylan. Acervo e foto do autor.
Meio sem jeito, com cara de menino atoleimado e medo de cometer mais uma gafe, sob o olhar enigmático e sorriso contido de Vandinho, o filho de Mariazinha, que parecia dizer-me: “toma, seu sem vergonha, oh! o que você queria”, imagino que tomei a decisão mais acertada, porque me senti aliviado e o bate-papo voltou a fluir solto, sem sobressaltos e animadamente, comendo ginete, bolo de arroz de Neide de Roque, bolo de milho frito no canto de panela de ferro e brevidade de Lelé, que Inocêncio houvera trazido da nossa amada Samavi, outrora também chamada Cidade Riso. Que maravilha! Verdadeiro brinde a Dionísio, o deus da comilança!

Obrigado, Dylan. (Desculpe-me, pela demasiada intimidade).

Sites consultados:

BARNABÉ. Barnabé Show de Graça Volume 4 Lado A. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sEL2-eoVqoU>. Acesso em: 15 out. 2020.

BOB DYLAN. Bob Dylan - 1976 - Desire. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sN50eDyIYF8>. Acesso em: 15 out. 2020.

SILVINHO. Mulher governanta. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Bm9BfDpaqdQ>. Acesso em: 15 out. 2020.


6 comentários:

  1. Embora eu desconfie que você não lê os comentários. Vou comentar assim mesmo. Essa sua crônica recuperou lembranças já há muito esquecidas. Como por exemplo Inocêncio meu professor.

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    1. Leio,sim. É que o e-mail aparece "desonhecido". Obrigado. Abraço.

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  2. Crônica fantástica! Se O Inocêncio for o tio de José Moura, nosso colega, eu o conheço pra caramba! Foi meu colega no terceiro e quarto ano no colégio de Dona Rosa. Já era da igreja Batista há muito tempo, e detestava que o tacasse. Gente boa da mais alta qualidade como é o seu sobrinho. Inda bem que não colocou "Hurricane" que fala de triplo assassinato em uma lanchonete sendo que um lutador de box foi condenado injustamente. A crônica trouxe gente da minha memória do passado já tão distante.

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    1. Olá, Joãozinho, é ele mesmo. Obrigado. Forte abraço.

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