domingo, 29 de março de 2020

A justiça divina socorre aos que dormem

Dormir durante viagens é meu forte. Mesmo diante daquilo que poderia me trazer contratempos, não me emendo. Confiram e divirtam-se.

Há um aforismo de origem latina, corrente no meio jurídico, que soa como advertência: Dormientibus non sucurrit lus. Isto é, “O Direito não socorre aos que dormem”, que em bom e entendível Português seria o mesmo que dizer: “a justiça não protege aqueles que dormem no ponto”. Ou, melhor, quem perde o direito por ignorar que há um prazo para exigi-lo; por não saber que tem esse direito, ou quando o descobre, é tarde demais, não pode mais exigi-lo porque o prazo decorreu.

Guardados os propósitos a que o referido alerta jurídico se destina, atenho-me ao verbo “dormir” que, para fins ilustrativos desta crônica, é tomado no restrito sentido denotativo, literal mesmo, principalmente para este escrevinhador que costuma “dormir no ponto”, cair nos braços de Morfeu, o deus do sono, mormente se estiver num ônibus a viajar.

Flagrantes numa dessas viagens. Década de 1990. Foto: Autor não identificado.
Compara
tivamente a estes momentos, meus conterrâneos santa-marienses, por certo, diriam que durmo mais que o cachorro de Detinha, do antigo Sertanejo Hotel, o atual Palace Hotel. Será? É o que veremos.

A propósito do meu salutar hábito de dormir (até certo ponto!), recordo-me das demoradas e cansativas viagens entre Santa Maria e Salvador nas décadas de 1970 a 1990, quando só sabíamos o horário de embarque, porque a chegada à Capital, devido ao péssimo estado de conservação das estradas e a “folga” de alguns motoristas, não havia horário ou mesmo dia certo para se chegar.

Numa dessas aventuras estradeiras, quando o ônibus saía de Santa Maria às 9 horas da manhã, com provável chegada a Salvador durante a madrugada, fui vítima de descuido do motorista ao final da viagem. Ele não observou, ao chegar à rodoviária de Salvador, se havia algum passageiro dormindo, o que penso ser de sua obrigação. Quando finalmente despertei, percebi que algo estava errado:

— Motô, motô, já chegamos?

— Oxente! O que você tá fazendo aí, môss? Já estamos é na garagem da empresa!

Fiz lá meus protestos, reclamei, esperneei, mas tinha pouco a fazer. Como costumo dizer que sou sortudo, a garagem da Viação Novo Horizonte ainda ficava no bairro das Sete Portas, portanto, bem pertinho da antiga Casa do Estudante de Santa Maria, na Ladeira do Hospital Santa Isabel, em Nazaré. Desse modo, só esperei o dia clarear um pouco mais, já que eram 4, 5 horas da manhã, para chegar a meu destino, são, salvo... e feliz.

Em outro momento, quando ia de ônibus de Salvador a Entre Rios, “garrei” no sono e só fui acordar uma cidade depois, ou seja, em Esplanada, aproximadamente distantes 28 km. E, como já foi dito que a sorte está comigo e eu conto sempre com a sorte, quando percebi o descuido, falei com o motorista que prontamente pediu para que um colega seu, que estava em outro ônibus com destino a Entre Rios, me desse carona. E tudo, a contento, foi resolvido.

Depois de haver contado com a sorte em duas ocasiões, falei comigo mesmo: 
vou ver se fico mais atento, não é possível”. É que, nestes momentos, costumamos dizer a nós mesmos que tal coisa não vai mais se repetir, que vamos ficar mais alerta, coisa e tal. Porém, entre teoria e prática há razoável distância, e esta última, a prática, é destino quase inatingível, e descuidos sempre acontecem.

No ano de 2015, viajei de Salvador a Santa Maria de Vitória, e desta, a Anápolis, Goiânia e Brasília, para visitar parentes e amigos. Na volta, de Brasília a Santa Maria, a última cidade, antes do meu destino final, é Correntina, onde os ônibus passam bem cedo, ainda escuro. E foi aí que me atrapalhei. Imaginei que estivesse vindo de Salvador, em que a última cidade é Santana, do lado oposto, passando antes por Brejolândia, Tabocas do Brejo Velho e Serra Dourada, ao lusco-fusco.

Desse modo, quando o ônibus já havia passado por Correntina e chegado a Santa Maria, dia clareando, continuei a dormir tranquilamente, a pensar que ainda fosse Brejolândia. Quando me dei por conta, Sol alto, ainda sonolento, imaginando haver chegado a meu destino, eis o tremendo susto: o sono me roubou, porque já estava em Serra Dourada, depois de Santana, a mais de 90 km de Santa Maria.

— Oxente, motorista, passou por Santa Maria e nem avisou — reclamei, azuretado, no que fui educadamente contestado pelo condutor.

— Avisei, sim, meu senhor. O cidadão é que dormiu no ponto — o que foi confirmado por muitos passageiros, restando-me, então, descer do ônibus, desolado. E ao fazê-lo, ainda lhe pedi ajuda, o que não me foi negado. Ele arrumou carona no ônibus Salvador a Santa Maria que, para sorte minha (uma vez mais!), estava parado na rodoviária a desembarcar passageiros e bagagens.

Ao entrar no veículo, para espanto meu (e imensa alegria), alguém me gritou lá do fundão:

— E aí, poeta, estava na festa? Ou se mudou para Serra Dourada?

Era a cantora Kátia Castro, que voltava de shows em Salvador, acompanhada dos amigos Arnoldo Teixeira e Boião, agora a rirem da minha cara, quando lhes contei minha trapalhada. Confesso: fui um dos trechos mais curtos e divertidos que já percorri. Valeu a pena passar do ponto, portanto.

Depois de tudo isso, sem sombra de dúvida, a justiça divina, ao contrário da justiça humana, em qualquer situação, sempre socorre principalmente aos que “dormem no ponto”. Contudo, por via das dúvidas (ainda!?), ficarei bem mais atento, é o que prometo, so-le-ne-men-te! Afinal, creio já haver esgotado minha cota de sorte — três vezes! — e estaria, doravante, a abusar dela. E ela não merece!

* * *


Após ler esta crônica, a conterrânea e amiga santa-mariense, Valéria Oliveira, contadora, administradora de empresa, advogada e evangélica, que pedi para revisar e fazer suas críticas, indicou-me passagens bíblicas para “sustentação da minha ‘tese’ de proteção divina aos que dormem”. Separei, portanto, três delas para apreciação do caro leitor:

“Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança.” (Salmos 4:8);

“O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome.” (Salmos 23:1-3);

“A respeito de Benjamim disse: ‘Que o amado do Senhor descanse nele em segurança, pois ele o protege o tempo inteiro, e aquele a quem o Senhor ama, descansa nos seus braços’”. (Deuteronômio 33:12).

* * *

Em tempo: Agradecimentos especiais a Valéria Oliveira, Maurício Paes Inácio e Eusélio Tonhá dos Santos (Zéu de Dona Eli).

domingo, 15 de março de 2020

Um pouco de médico e muito de louco

Quem já passou por algum procedimento médico, deve conhecer alguém, não médico, que é “médico” plantonista de especialidade múltipla. Confiram e divirtam-se.

Muita gente, amparada na sabedoria popular que assegura: “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”, assume, sem o devido conhecimento, o seu lado médico, mas quase sempre demonstra a sua face louca, de curandeiro inexperiente.

A propósito destes “médicos loucos”, tenho ouvido, extraídas de um passado remoto de um Brasil pouco assistido, histórias tragicômicas, como daquele senhor que vai ao preparador de garrafadas e narra o estado de saúde do pai. O curador, assim referido, prepara uma porção milagrosa e manda que ele dê ao genitor adoentado.

Tempos depois, o curandeiro encontra aquele cidadão a quem atendeu e lhe pergunta como vai o pai, se havia sarado, coisa e tal, e ouve a seguinte resposta:

— Depois daquela garrafada, meu pai arruinou da caganeira e entregou a alma a Deus!

— Mas morreu curado! — adiantou-se o curador, sem mais conversa ou delonga.

Quanto a mim, em 2008, fui submetido a uma intervenção cirúrgica para retirada de um osteocondroma no fêmur, pequeno tumor ósseo, próximo ao joelho, certamente desenvolvido a partir de um trauma, provocado por uma queda. É que fui subir uma escada a correr, quando criança, tropecei e caí. No local, formou-se um hematoma que logo desapareceu sem deixar aparente sequela.

Muito tempo depois, já adulto, apareceu um caroço que começou a incomodar-me. Os ortopedistas que me assistiram, Paulo Henrique de Figueiredo Cordeiro e Rilson Figueiredo Silva, garantiram que a intervenção seria bem simples, o que me tranquilizou bastante e encorajou-me até a pedir-lhes que gostaria de ver o procedimento, no que foi prontamente atendido.

Aliás, submeter-me a cirurgia já não me apavora mais. Esta é a terceira, e sempre creio — piamente — que será exitosa. Meu único receio é o momento da anestesia, quando ela começa a agir e a gente começa a “viajar”. Aí dá certo medo. Antes e depois, um alívio!

Os dias, entretanto, antecedentes ao evento é que foram um misto de ansiedade, “aconselhamentos” e preocupação por parte de amigos e conhecidos. Dentre eles, um muito sabido, que me meteu paúra:

— E aí, poeta, já marcou a cirurgia?

— Já. Vou fazer dia 4 de novembro, sexta-feira.

— Já fez todos os exames?

— Já, sim. De sangue e um eletrocardiograma.

— Só esses? Num vai fazer de urina e de fezes, não?

— Não. O médico disse que bastavam esses.

— Rapaz! Ó p'aí. Esses doutô de hoje facilita muito, dá muito mole pro azar. É por isso que fica um montão de gente morrendo à toa nas filas do SUS e da UPA. Num quero te meter medo, não, meu bróder. Mas, s’eu fosse você, s'eu tivesse ni seu lugar, procurava outro médico. Procurava ver isso direito. Com cirurgia a gente num brinca, não, meu irmão! Você pode se dá de mal!

Chegou o dia esperado e tudo ocorreu de acordo o previsto, sem nenhuma intercorrência, como dizem os profissionais de saúde. Eu é que fiz uma estripulia por excesso de confiança. Três ou quatro horas após a cirurgia, achei que poderia ir sozinho ao banheiro... E o fiz. As vistas escureceram e eu desabei no chão do banheiro, bem embaixo do chuveiro, que pingava.

Ao recobrar a consciência, comecei a gritar. Fui imediatamente socorrido, repreendido com veemência por uma enfermeira e quedei-me quieto, ensoado, com a cara sambando de menino estripulento. Nem imagino por quanto tempo fiquei desacordado.

Tive alta no dia seguinte e voltei para o meu lar com a recomendação de evitar esforços exagerados, não molhar e tomar dois remédios: um anti-inflamatório e um antibiótico. Só isso. Aliás, Dina Marchesini, amiga e médica homeopata, recomendou-me também Arnica e Syphytum.

Durante os dias pós-cirúrgicos, nada de extraordinário aconteceu, exceto ao encontrar um ex-colega dos tempos de bancário, que foi logo indagando, com a cara de assustado:

Gravura de Jailson Santos. Jão, 2019.
— Poeta, o que foi iiisssooo, meu irmão? Operou dos menisco ou dos ligamento?

— Não, não. Foi só a retirada de um tumor no fêmur.
— Um tuuummmôôô? Foi isso mesmo, meu irmão, que escutei?  Um tumôôô? Já fez biópsia?

— Já mandei fazer. Foi o que o médico solicitou.

— E mapeamento ósseo? Densitometria?

— Não! Num sei nem que diacho é isso, meu amigo. Serve pra quê?

— É um exame muito importante que serve muito e ajuda bastante.

Para que “serve” e a quem “ajuda”, ele não soube me esclarecer. Entretanto, do alto da sua sabedoria hipocrática, e com indisfarçável e profundo conhecimento de causa, ainda me aconselhou, pausada e seriamente, a contrapor protocolos das ciências médicas:

— Rapaz, s’eu tivesse ni seu lugar, procurava ver isso direto. Só biópsia num basta, não. Tô te dizeno, meu bróder... Vai por mim! Você vai se dá de bem!

Diante, portanto, de tudo que vi, ouvi e passei, vai um conselho à classe médica:

— Toma cuidado, doutor, porque na sua “cola”, instruídos pelo “inconteste Dr. Google, há sempre um tudologista de plantão, de múltipla especialidade. Vacile não, meu irmão, o homem é um semideus virtual, um Hipócrates ressureto e hodierno!

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...