sexta-feira, 5 de agosto de 2022

A menina e o retratista lambe-lambe


Era uma tarde como tantas outras que ali tenho ficado, sentado, após o almoço. De bobeira, diriam alguns. Fazendo o quilo, outros diriam. Não importa. Descansando... Viajando nas imagens de uma praça soteropolitana bem movimentada e histórica.

Este “ali” a que me refiro é a Praça da Inglaterra, no Comércio, em Salvador. Sentado num banco que contorna o monumento da imponente estátua de bronze do tribuno J. J. Seabra, estava eu, bem defronte, em postura iogue. Do meu lado direito, a uns vinte metros, o McDonald’s. Bem mais próximo, também sentado, estava um senhor portando uma pasta 007, lendo um jornal, a caracterizar-se – mesmo sem querer – as “ilustres figuras” que naquelas imediações dão plantão diário, os tão procurados agiotas.

Retratista Lambe-Lambe. Foto: Reprodução / Internet (vide link)
À esquerda, o prédio da Casa Forte, antiga sede da caderneta de poupança do extinto Banco Econômico, ASPEB, aquela da abelhinha. Ainda desse lado, estava postado um daqueles profissionais inconfundíveis, memoráveis, um fotógrafo lambe-lambe. Além dele, um casal de namorados trocando carícias, promessas (provavelmente), confidências mil, “na deles”, indiferente ao burburinho, aos disse me disse daquele movimentado logradouro.

À propósito desses profissionais de escol, magistrais, em Santa Maria da Vitória havia alguns deles, tais quais Jesuíno, Expedito e Pombinho, estes, também “lambe-lambistas”, e outros retratistas merecem registro como Vá de Tenente, João Fulosoro, Randolfo, Neném, Carlito e Tião de Lita (Tiãozinho Roupa Limpa). Hermes Novais, Zim Bacaiau e Zé de Maria são bem mais recentes. Tive o privilégio de ter meus primeiros retratos feitos provavelmente por um dos três primeiros aqui citados, como também algumas fotos 3 por 4 feitas por profissionais de Salvador.

Novais Neto, Jandira e Nena (Janilza). Acervo pessoal.
De volta ao meu observatório, a Praça da Inglaterra, enquanto eu, a pensar, continuei observando aquele vaivém de pessoas e de carros, aquele burburinho, lá pelos idos dos anos 1980. Naquela tresloucura toda, viam-se garotos limpando para-brisas de automóveis, vendedores de picolés Capelinha, até um marreteiro com uma gaiola abarrotada de aves trepadeiras dentro de uma sacola do Paraguai mercava impune e criminosamente seus troféus.

Eis que, da tresloucada multidão, emerge um brotinho de seus presumíveis 15, 16 anos de idade. Uma galeguinha, poderiam qualificar meus conterrâneos santa-marienses. Sarará, diria alguém não adepto a desnecessários eufemismos. Uma loirinha esperta, sim! Confortavelmente merecia tal adjetivo.

A loirinha aproxima-se do fotógrafo, pergunta o que não deu para ouvir, certamente a respeito de preço e prazo de entrega de um retrato 3x4. Indagações de quem, geralmente, pergunta por perguntar e o que quer mesmo é submeter-se a mais um teste de fotogenia, a conciliar necessidade, urgência e preço acessível – a perfeita tríplice fusão.

A jovem então se sentou num desconfortável banquinho de madeira. Tocou os cabelos na tentativa de penteá-los com a ponta dos dedos. Olhou para mim e sorriu despretensiosamente. Se eu estivesse mais próximo dela, pediria para deixar os cabelos como estavam: encaracolados, em desalinho, bonitos, a dispensar o desnecessário pente. Mas não, preferiu atender a seus conceitos de beleza, evidentemente, indispensáveis para ela.

Desse modo, ela tirou um pente de uma bolsa. Meio sem graça, no entanto, com um sorriso doce e sem razão no canto da boca, tentou penteá-los. Deu um caprichada final nos cabelos com ambas as mãos, olhou mais uma vez para este “discreto” assistente, lindamente sorriu e pousou fo-to-gra-fi-ca-men-te.

Enquanto minha observada estava se preparando, o retratista, aliás, o “lambe-lambista”, cheio de intimidades com sua parafernália, fazia mil e uma peripécias com seu equipamento fotográfico sustentado num tripé. Enfiava a cabeça, os braços naquele estranho paletó preto acinzentado que, de tão surrado, perdeu – há muito tempo – a cor original.

Finalmente prontos, conversaram qualquer coisa e sorriram. Ela se esforçou em ficar séria, rosto sereno, não carrancudo. O retratista, por último, ainda mexeu no instrumento fotográfico, voltou a arrumar direitinho a cabeça daquele modelito e disparou, decerto, o tradicional grito de alerta: “olha o passarinho”. Pronto, agora, só restava esperar pelo resultado do clique. E, uma vez mais, a linda menina sorriu, tentou ficar mais à vontade, afinal, dali a pouco constataria que “contra ‘foto’ não há argumento”, veria sua carinha estampada em papel fotográfico.

Outra vez recomeçaram os malabarismos daquele “lambe-lambista”: máquina, emulsão, solventes, reveladores, papel fotográfico, positivo virando negativo, negativo sendo copiado e, por fim, eis o retrato 3 por 4, pronto, inconteste, prova definitiva de que ambos procuraram pelo melhor resultado: a menina e retratista.

Nesse ínterim, ainda aproximou um daqueles garotos de rua, olhou a foto, procurou a top model, sorriu e foi-se embora, enigmaticamente. Pude notar que a loirinha ficou meio apreensiva, mas continuou sentada, impassível. Chegou outro menino, esse vendendo picolé Capelinha, e ela nem lhe deu atenção, estava mesmo era ansiosa para ver seu rostinho jovial.

Ela não se conteve, no entanto, levantou-se (a esta altura os retratos estavam sendo secados com auxílio de uma flanela), pediu para olhá-los, balançou discretamente a cabeça e deixou no ar possivelmente frase do tipo: “É... tão boas”.

Minha jovem modelo ainda teve que esperar até que as fotos fossem recortadas e colocadas num porta-retratos plástico. Enquanto isso, ela abriu novamente a bolsa, pegou uns trocados, pagou, olhou mais uma vez em minha direção e rapidamente misturou-se à multidão da Praça da Inglaterra.

Confesso, sem dúvida alguma, que tive vontade de ver a ambos: ela, de perto, primeiramente, depois as fotos. Fiquei no desejo apenas. Faltou-me decisão ou até uma boa dose de curiosidade a ser posta em prática.

E agora, cronista-bancário, o tempo passou muito célere que nem foi sentido? Já era hora, portanto, de voltar (atrasado) ao trabalho no Banco do Estado da Bahia, o extinto Baneb, e enfrentar as últimas quatro horas daquele dia menos comum, daquela tarde que se fez singular, única, sem dúvida.

Agradecimento:

Agradecimento especial ao conterrâneo e amigo Antônio Washington Simões, a quem quase sempre recorro para refrescar lembranças fugidias referentes a acontecimentos em nossa Santa Maria da Vitória, Bahia, Brasil.

Referências:

FOTO LAMBE-LAMBE OU OITI: ascensão e declínio na Aracaju de outrora. Disponível em: <https://www.ufs.br/conteudo/68462-foto-lambe-lambe-ou-oiti-ascensao-e-declinio-na-aracaju-de-outrora>. Acesso em: 5 ago. 2023.

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Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...