sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Na sala de aula - "Eu vi ela"

Finalzinho de ano letivo. A professora de Português chegou à sala de aula com ar meio cansado, já ansiando por merecidas férias, mas ela estava ali, no batente, caxiasmente. Pegou o diário de classe e começou fazer a chamada, numericamente, afinal, àquela altura do período escolar, todos já sabiam (ou deviam saber) de cor o número correspondente ao seu nome:

— Número 1.

— Presente, professora — respondeu Abraão, timidamente, lá do seu cantinho.

— Número 2.

— Iam present, my teacher — esnobou Ana Helena, fora de hora, o seu inglês carregado de sotaque de nordestina, baiana, santa-mariense.

— Número 3.

— Tô aqui, p’sssooora — fez o mesmo Antônio Serpa, a distribuir simpatia com seu sorriso largo.

Sem mais nem menos, a mestra parou de fazer a chamada. Deu uma olhadela na sala e perguntou:

— Está faltando mais alguém, hoje, além de Maria Pereira, meus alunos?

— Só ela mesmo, p’sora. Eu vi ela, agorinha mesmo, lá no Jardim Jacaré — confirmou Deinha.

— “Eu vi ela” o que, seu inguinorante, vai estudar Português. Viela é uma rua estreita, assim que nem aquela que tem dois nomes, a Rua dos Doidos, onde mora o professor Jairo Rodrigues. O certo é “eu a vi ela”, entendeu? Vai estudar mais — corrigiu Binha, o senhor da situação.

Rua Marechal Deodoro e Rua Padre Oton Vieira Lima, mais conhecidas como Rua dos Doidos.
— Ô retrinca, agora eu vi! Agora foi que disgramou tudo, meu Senhor Bom Jesus da Lapa! O erro ficou foi mais maior ainda, sua burralidade — deu o troco Deinha, sem pensar duas vezes e sem poupar seu repertório de palavras incomuns, quase um dialeto.

Àquela altura, perplexa, atônita, a pobre professorinha nem sabia mais o que estava a fazer ali com tanta agressão à sua matéria. A mestra, então, aproveitou a oportunidade para “soltar” o verbo com vontade: condenou as gírias, dizendo que se tratava de pobreza de vocabulário dos jovens, que gíria só enfeava nossa bonita Língua Portuguesa etc. “Mandou ver”, como se diz no mundo das gírias, e concluiu seu fervoroso e cáustico discurso com esta preciosidade:

— Olha, minha gente, falar gíria “não tá com nada”! Vamos estudar, ler um bom livro que é bem melhor! 
— finalizou enfaticamente, o que me fez lembrar a música “Mexericos da Candinha”, composição de Roberto e Erasmo Carlos, quando em determinado trecho eles utilizam gíria, o verbo maneirar, para se referirem a Candinha, maior fofoqueira da TV e do rádio brasileiros dos anos 1960:

— Ela diz que falo gíria / e que é preciso maneirar — verbo expressar gíria.

Os alunos, sem nada entenderem, um olhava para a cara do outro com riso reprimido, mas em silêncio permaneceram, afinal, estava bem claro para eles que a mestra se contradisse, enganou-se, porque a expressão “não tá com nada” é, sem dúvida alguma, uma graciosa gíria, um coloquialismo.

Deinha, no entanto, tentando a todo custo dominar o riso, não se conteve e fez esta hilária confissão, para deixar em pânico ainda mais a sua dedicada mestra:

— P’sora, pra falar a verdade, eu sou bom mesmo é ni Português, mas minha di-fi-cu-li-da-de é só ni Aritmética, principalmente, essa tal de conta de dividir de três letras! Ô continha difícil, minha gente! 
— referindo-se a divisões cujo divisor tenha três algarismos ou letras, como ele diz.

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Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...