sábado, 25 de julho de 2020

Aquelas cartas de amor

Escrever cartas sempre foi um dos meus hobbies prediletos, tanto para programas de rádio quanto para amigos, amigas, namoradas, Brasil afora. Confiram. 

Principiamos a década de 2020, no entanto, foi lá pelo limiar dos anos 1970 que comecei a me dar conta de mim. Perceber o mundo, fazer amigos e a viver principalmente o universo das letras, escrever minhas primeiras cartas, ora para revistas, a fim de corresponder-me com alguma menina, ora para programas de rádio. Algumas revistas até publicavam trechos dessas correspondências.

Para uma missiva enviada ao Programa O Poder da Mensagem, apresentado pelo radialista Hélio Ribeiro, na Rádio Bandeirantes, todas as tardes, ele assim respondeu com seu inconfundível vozeirão, de um português claro, corretíssimo e acessível:

— Este programa, que muito nos honra e envaidece, é ouvido em Santa Maria da Vitória, na Bahia, por Adnil Novais Neto, que quer saber a origem e o significado do seu nome.

O renomado locutor, que publicou o livro com o mesmo nome de seu programa, O Poder da Mensagem, de que tratei logo de adquirir, deu suas explicações relativas ao meu prenome, dizendo tratar-se da variação de Adelino, que significa, dentre outras acepções, “serpente nobre ou serpente da nobreza”. Que horror! Fiquei meio assustado. Descobrir-me venenoso?! Jamais!

Livro O Poder da Mensagem, de Hélio Ribeiro. Vol. 1. São Paulo: Sorvil, 1976.
O mais legal e gratificante é que, ao passear pela cidade, principalmente à noite na Praça do Jardim Jacaré, ou andar pelas ruas, sempre alguém me parava para dizer que ouviu meu nome no rádio, inclusive pessoas da zona rural, a parabenizar-me, o que me deixava meio encabulado, mas deveras contente, sem dúvida alguma.

Quanto às cartas, necessariamente, cartas de amor, escrevi muitas e muitas também recebi, que as conservo, até hoje, bem acondicionadas, a fazer parte de minhas memórias afetivas. E isso me faz lembrar o poema de Álvaro de Campos, heterônimo do universal poeta português Fernando António Nogueira Pessoa, Todas as cartas de amor..., no qual, em seus primeiros versos, ele é incisivo: “Todas as cartas de amor são / Ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas. // Também escrevi em meu tempo cartas de amor, / Como as outras, / Ridículas. [...]”.

Este primoroso poema de Fernando Pessoa você pode encontrá-lo no link ou livro citado nas Referências como também ouvi-lo no CD duplo, Imitação da Vida, em que Maria Betânia magistralmente o declama, dentre outros do mesmo autor da Terrinha.

Em relação às cartas amorosas, redigi muitas, todas elas ridículas, e outras tantas recebi, não ridículas, que muito me ajudaram a exercitar a escrita e a corresponder-me com pessoas Brasil afora. Além disso, ainda havia os cartões postais que trocávamos, se bem que nossa Santa Maria da Vitória só veio a ter um lá pelos anos 1990, idealizado por Neném Fotógrafo com fotos Hermes Novais.

Cartão Postal com vistas de Santa Maria da Vitória (BA), década de 1990. Fotos: Hermes Novais.
Algumas destas correspondências recebidas ou enviadas muito me marcaram. Quando morei em Brasília, em 1978, na casa de parentes, costumava ficar numa pequena área na frente da casa à espera do carteiro. Certa feita, quando ele chegou, eu estava acompanhado da minha tia Aurelina, que recebeu uma ruma de cartas, quase todas para mim. Uma delas, porém, foi retida e fui questionado:

— Quem é esse tal de “lindA siavoN oteN”?

— Sou eu — respondi, inocentemente, sem hesitar ou maldar qualquer coisa.

Quando o carteiro saiu, minha tia virou-se para mim e me deu uma baita “regulagem”:

— Só recebi porque vi que o remetente é René de Nenzinha. Mas não faça mais isso, não, senão vou devolver dizendo que não mora ninguém com este nome aqui em casa. Seu nome é Adnil, nome do seu avô paterno, casado com minha irmã. Não quero saber dessas coisas aqui em casa, não, viu?

Posteriormente, já morando em Salvador, na década de 1980, mais precisamente na Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória (Caes), continuei a receber muitas cartas e muitas também escrever. Sempre que o carteiro chegava, aquele que as recebia, reclamava: “só tem pra você”. E numa dessas ocasiões, certo morador que foi recebê-las, da porta mesmo me gritou irado:

— Só chegou uma carta. E foi pra você, de uma tal de “Marigada” — e me jogou nas mãos.

Quando fui observar de perto, era de Margarida e não de Marigada, ex-colega de cursinho, de Salvador, a me procurar. É de observar-se neste fato, que até dentro da própria cidade mandávamos cartas, afinal, telefone nem todos tinham. Muitas vezes teríamos que ir pessoalmente ao endereço.

Quanto às cartas, sobretudo, as de amor, basta registrar que apenas de uma correspondente recebi quase 80 e, sem dúvida alguma, devo ter escrito muito, mas muito mais. Redigi, determinada feita, para alguém, três folhas de papel almaço pautado, o que corresponde a seis folhas de papel A4, escritas em ambos os lados. E minhas letras não são grandes.

Uma das quatro caixas de correspondências e uma caixa para fitas cassetes dos Correios.
Os Correios, na década de 1980, nos deram uma mãozinha, passaram a disponibilizar uma novidade, o Sistema Fonopostal Brasileiro (SFB), que eram umas caixinhas plásticas com lacre para se colocar fitas cassetes, nas quais gravávamos nossas mensagens e remetíamos aos nossos destinatários. Havia fitas de 10, 20 e 30 minutos, o que se tornou mais romântico e prático enviar e receber cartas, especialmente, de amor, gravadas, as providenciais fonocartas ou cartas fonadas.

Caixas do Sistema Fonopostal Brasileiro (SFB) dos Correios.
A propósito ainda de gostar de redigir cartas, mormente “as cartas de amor ridículas”, passei a ser procurado por amigos e amigas para “dar uma forcinha” na redação, o que acabava por envolver-me completamente em suas romanescas histórias. Eu as manuscrevia e pedia para que o interessado ou interessada as transcrevesse, evidentemente. É que minha caligrafia não poderia, jamais, delatar o verdadeiro missivista para não constranger o(a) postulante a namoro.

Carta redigida por Novais e datilografada por um pretendente a namoro.
Dia desses, um amigo me presenteou com uma dessas cartas redigidas por mim e datilografada por ele, datada de 22/3/1979. É possível que só agora a destinatária descubra quem foi o redator daquela missiva repleta de pieguices. Como o pretendente a namoro não me pediu segredo, pelo contrário, me autorizou e até mesmo me estimulou a publicá-la, assim o farei, sem me sentir um inconfidente. Agradeço, ademais, a esse amigo por ter guardado tão formidável relíquia. Quanto aos equívocos gramaticais (não sei se meus, dele ou de ambos) e os erros datilográficos, só nos resta pedido de desculpa à ocultada pretendida de outrora.

Vivemos, por fim, a era de comunicação ultrarrápida, ou melhor, instantânea, o que não deixa de ser bom, todavia rouba-nos a alegria de receber uma ansiada carta vinda de algum lugar, remetida por um alguém querido. Isso praticamente acabou. No entanto, como para toda regra há uma exceção, justamente para confirmá-la, recebi, dia desses, não uma carta, mas um WhatsApp de uma amiga distante, Cibele Tedesco, gaúcha de Veranópolis (RS), musicista e maestrina do Coral de Caxias do Sul (RS), com uma foto seguida da mensagem: “Olha o que eu achei guardado em minhas coisas....”.

Foto enviada, via WhatsApp, por Cibele Tedesco, em 17/1/2020.
Naturalmente que esta lembrança me fez muito, mas muito feliz e o foi o principal motivo que me levou a escrever esta crônica para rememorar, afetivamente, antigas missivas, inclusive a que aparece na imagem, manuscrita num papel timbrado do Banco do Estado da Bahia, onde ainda trabalhava, datada de 13/3/1995. E quanto ao jornal, este me trouxe a lume inusitado e caricaturesco episódio porque passei.

Certa ocasião, vindo da Rodoviária de Salvador para minha residência no Engenho Velho de Brotas, ao passar pelo bairro de Brotas, observei que vários passageiros no ônibus, estavam com jornal nas mãos, lendo-o. Algo normal. E fiz pouco-caso. Somente quando me sentei ao lado de uma senhora, notei que no jornal havia uma foto minha. Fiquei meio escabreado, abaixei a cabeça e, logo que cheguei ao meu destino (o que demorou um absurdo!), saí de fininho para não ser identificado.

Aquele importante periódico, por título Viva Brotas, idealizado pelo jornalista Orlando Oliveira e por mim diagramado, circulou no referido bairro e bairros adjacentes na década de 1990. Naquela edição, especificamente, havia uma entrevista dada por mim, estampada na capa, o que, sem dúvida, muito contribuiu para divulgação de meus despretensiosos escritos, razão porque sou muito grato!

Referências:

BETÂNIA, Maria. Mensagem (ao vivo): Carta de Amor. Disponível em: <https://youtu.be/-6utkxYcBuM>. Acesso em: 27 mar. 2020.


PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. In: ­______. Obra poética. Volume único. 9. ed., 4. reimp. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 333.
______. Todas as cartas de amor são ridículas. Disponível em: <https://www.revistaprosaversoearte.com/todas-as-cartas-de-amor-sao-ridiculas-alvaro-de-campos-fernando-pessoa/>. Acesso em: 20 jul. 2929.

sábado, 11 de julho de 2020

Eu te amo, Serotonina

Apresento, nesta crônica, o Dique do Tororó, lugar muito bonito onde me exercito quase todos os dias pela manhã e me permito fazer declaração de amor. Vejam se tenho razão.

Despertei, hoje, meio sorumbático, pachorrento. Não sei exatamente qual a razão. Desconfio que tenha sido resultado de algum sonho mal sonhado que não me veio a lume ou uma saudade sem aparente causa. A verdade é que estou me sentindo macambúzio ou, para não fugir da minha origem, como certamente diria meu pai, Tião Sapateiro, falecido no dia 27/6 último, de causas naturais, aos 91 anos: “Hoje, acordei meio descalqueado”.

São quatro horas da matina, a noite e sua gente ainda dorme e nubiloso está o céu. A tentação é de ir para frente do computador procurar não-sei-o-quê até o dia clarear. Resisto bravamente. Quando isso me ocorre (o que é raro), já conheço muito bem o infalível antídoto: fazer minha caminhada ou corrida no Dique do Tororó, um dos lugares mais aprazíveis de Salvador, para reencontrar minhas amigas alto-astrais: a serotonina e a dopamina, neurotransmissores bem-humorados, energéticos, dispostos e sempre disponíveis, basta tão somente procurá-los.

Dique do Tororó - Salvador - Bahia - Brasil. 2018. Foto: Novais Neto.

Há mais de 40 anos, dou-me ao prazer de exercitar-me nesse belo parnaso. Sinto-me tão bem que me fiz até participar, por três vezes, da Corrida Internacional de São Silvestre, não como atleta a disputar as melhores posições, mas como amador a testar seus próprios limites e sentir a inexprimível sensação de, após subir a Brigadeiro Luiz Antônio, despontar na Avenida Paulista e “correr para o abraço” de mil braços invisíveis à procura de outros receptíveis amplexos.

Minha primeira participação foi no já distante ano de 1988, a 63ª Corrida Internacional de São Silvestre, última que aconteceu à noite, com largada às 23h30, num percurso em torno de 8km. As demais, com percurso definitivamente fixado em 15km, ocorreram nos anos de 1994 (70ª Corrida) e 1999 (75ª). O tempo voa muito mais rápido que os pés dos melhores corredores, isto é certo. Em 2019, ano passado, realizou-se a 95ª edição da mais famosa corrida do País.


63ª Eliminatória da Corrida de São Silvestre (Salvador, 1988) e 70ª Corrida de São Silvestre (São Paulo, 1994).

75ª Corrida de São Silvestre (medalha), ano de 1999, terceira participação. Fotos: Acervo pessoal.
No Dique do Tororó, entretanto, o devaneio é outro. É bem mais real. Se corro, penso menos e me exercito mais. Divago e espaireço profundamente ao andar. Às vezes, nem me dou conta de já haver percorrido seus 2.600 metros de puro prazer, duas vezes, nos sentidos horário e anti-horário. São, portanto, nesses mágicos momentos que organizo minhas ideias, alinhavo poemas, trovas, crônicas e declamo, baixinho, minhas poesias preferidas. Cantarolo também canções antigas, românticas, entoadas por minha mãe Jandira Almeida, 90 anos, que me transportam inevitavelmente para outra possível biodimensão.

A estes momentos, se certo estou, é que me dizem quão bela é a vida e que me animam a enfrentar os percalços da caminhada e contornar os descaminhos. Amar os amigos, minha família, minha filha, minhas terras queridas: Santa Maria da Vitória, sempre hors concours, e Salvador, minha cidade adotada; amar meus amores, sem olvidá-los, jamais; sentir que a felicidade é relativa e que cada um de nós é que sabe – e sente – se é ou se não é feliz.

Dique do Tororó - Salvador - Bahia - Brasil. 2018. Foto de um corredor anônimo.
Tempos atrás, assisti a uma entrevista do médico Dráuzio Varella que falou sobre “sentir-se feliz e a sensação de prazer”, mais especificamente sobre a serotonina e a dopamina. Enquanto a primeira, segundo o especialista, conhecida também como substância “mágica”, é sedativa e calmante; a outra, a dopamina, nos proporciona energia e disposição.

Não me convém, entretanto, adentrar estes caminhos científicos porque não é o propósito desta crônica e nem tenho conhecimento suficiente para tal, evidentemente. Ademais, como se diz coloquialmente em Soterópolis: “não é a minha praia”. Por outro lado, seja lá qual for “a minha praia” e, sem receio de que esteja a fazer falsa declaração de amor, proclamo, aos quatro ventos, alto e bom som: Eu Te Amo, Serotonina!

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...