sábado, 18 de maio de 2024

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos lançamentos do livro “Manual para corações machucados”, de Bruna Lombardi, atriz e escritora, e do livro “A vida é um presente: mantras para o seu dia a dia”, da apresentadora e jornalista Rita Batista, na Bienal do Livro em Salvador, dia do encerramento. Comprei o ingresso com oito dias de antecedência.

Saí cedo de casa, às 9 horas, uma vez que um bate-papo e a sessão de autógrafos estavam previstos para iniciar às 10 horas. Na frente de casa, à espera de um veículo por aplicativo, tive que retornar para pegar um dos livros de Bruna, para que ela autografasse, pois havia esquecido. Antes do horário, apesar de tudo, eu já estava no local. Combinei com André Batista, irmão de Rita, que nos encontraríamos lá e visitaríamos os estandes de venda, enquanto aguardávamos a presença das escritoras.

Já dentro da Bienal, num salão muito bonito e repleto de visitantes, resolvi mandar um áudio a meu amigo para ver onde ele estava, uma vez que não logrei êxito em fazer uma ligação. Minutos depois, ele responde dizendo que não poderia ir, que aconteceu um imprevisto, coisa dessa natureza.

Diante disso, fui buscar informação onde seria o local da palestra de Bruna e Rita, consequentemente, a sessão de autógrafos. Qual não foi minha surpresa quando alguém, do balcão de informações, me disse que Bruna Lombardi não viria. Lamentei muito, afinal, havia levado o primeiro livro dela, de poesia, “No ritmo da festa” (1976), prefaciado por Chico Buarque, para que ela o autografasse, como também compraria sua nova publicação. A verdade é que já tenho outro livro dela, autografado.

Recordei-me, nesse momento, de que o colega de trabalho e amigo, Marcos Navarro, sabedor de que eu iria à Bienal, mandou-me um link de um site de notícias dando conta de que Bruna não estaria na Bienal. Ignorei, pensando se tratar de notícia anterior, quando ela cancelou um lançamento no Rio de Janeiro, 25/4/2024, por conta de uma virose, segundo noticiou algum site, que não me recordo qual.

Apesar das duas notícias negativas, não fiquei tão triste assim. Fui visitar os estandes. Num deles, ao sair com o livro de Bruna embaixo do braço, um fiscal tocou-me o ombro e me pediu a nota fiscal do produto que portava, assim, sem a devida sutileza.

– Não tenho mais, comprei há muito tempo – e lhe passei o livro. Ele folheou, viu as páginas amarelecidas pelo tempo, viu também um carimbo da minha biblioteca pessoal e, com “a cara sambando”, meio desconcertado, pediu-me desculpa um tanto formal.

Isso, confesso, não me tirou a paz, afinal, fui meio displicente mesmo. Não deixei, evidentemente, de orientá-lo a ter mais cuidado ao se dirigir a alguém. Era um jovem, por certo, incipiente no desempenho daquela profissão.

Passado esse “desagradável” momento, me dirigi até a Arena Jovem, local onde aconteceriam as palestras e os autógrafos. Fui direto ao lugar onde estava sendo vendido o livro de Rita Batista. A vendedora, entretanto, me informou que os exemplares haviam acabado e que um mensageiro fora buscar mais livros em Brotas, bairro relativamente próximo da Bienal.

Confesso que, agora, fiquei decepcionado. E, em quase pânico, mandei um desesperado áudio para André, o já referido irmão de Rita, que, sorridente, procurou me tranquilizar:

– Relaxa, poeta, o seu tá garantido… e autografado!

Relaxar? Como? Eu queria, sim, era vê-la autografando, tudo filmado e fotografado, do contrário não teria graça. Procurei, a pesar de bem contrariado, seguir o conselho do amigo.

Ensimesmado, entrei na Arena Jovem e fiquei a aguardar o começo do evento, procurando me apaziguar, era o que me restava, afinal. Faltavam uns 20 minutos para ter início as palestras, quando – acreditem – a luz foi embora. Tudo só não ficou às escuras porque uma larga porta deixava entrar a claridade do lindo dia de Sol soteropolitano.

O tempo passou e nada de a luz voltar. Passavam muito das 10 horas, horário previsto para ter início as palestras, quando, furtivamente, Rita aparece no palco e foi aquela gritaria. Coisa de cinema. Quando olhei para o público, pude ver como se fosse uma nuvem de pirilampos. Eram as luzes dos muitos celulares nas mãos dos ávidos admiradores de Batista, merecidamente.

A apresentadora desceu do palco para tirar foto com seu público, enquanto a energia não voltasse. Aproveitei a ocasião, aproximei-me dela quanto pude, já que estava rodeada de fãs, e posicione-me para fazer uma selfie. Que surpresa bacana, quando vi que ela estava bem à altura do meu ombro. Aproveitei e lhe perguntei pela mãe, Dona Angélica, para revê-la e naturalmente registrar o singular momento.

Tudo continuava escuro. Rita voltou para os bastidores. E a luz voltou também! Minutos depois, a jornalista Rita, Alan Castro, poeta que substituiu Bruna, autor de quatro livros, dentre os quais “O colecionador de saudades” (2023), e a mediadora Gabriela Almeida voltaram ao palco. Quanta alegria! Quando Rita se sentou, pegou o microfone e começaria a falar… Imaginem: de novo, tudo virou breu! A energia foi embora! “Mas será o Benedito”, pensei cá com meus botões.

Rita Batista, ainda assim, não perdeu o rebolado: brincou com a situação e retornou para o camarim. Minutos depois, sem previsão de restabelecimento da energia, fomos orientados a nos dirigirmos ao Café Literário, no segundo andar, onde ocorreriam as palestras e a tão esperada sessão autográfica.

Antes de dirigir-me ao Café Literário, pude observar que os livros haviam chegado (milagre!) e estavam à venda. Peguei uma pequena fila (“furei”, melhor dizendo, dado o meu sexagenarismo) e comprei meu presente. Agora, sim, tudo finalmente estava começando a dar certo! Ufa! Ufa! Ufa!

Foto: Reprodução / Internet
O esperado bate-papo ocorreu em mesa composta por Rita, Alan e Cristina, intitulada “A insustentável leveza do ser”, o que me remeteu ao livro de mesmo nome do escritor tcheco Milan Kundera. O poeta Alan declamou alguns belos e encorajadores poemas, além de fazer emocionante relato do parto da esposa, quando ela trouxe à luz a menina Serena. Rita, por seu turno, animadíssima e irreverente, brincou, cantou e encantou o público presente naquele espaço, cuja lotação chegou ao máximo.

E a sessão de autógrafos? Creiam, não seria ali. Fomos para um grande salão ao lado, com grades de ferro que formavam um labirinto, para que as pessoas não aglomerassem juntos aos escritores. Tudo certo, “no padrão
, como dizemos. Na minha condição de sexagenário, adiantei-me um pouco na fila de espera. Só um pouco mesmo, já que havia outra para idosos. Eu preferi ficar na muvuca.

Finalmente, chegou a minha vez. Uma moça, que ajudava na organização, ofereceu-se para filmar e fotografar, o que me livrou de fazer selfies malfeitas. Pronto, missão cumprida e muitíssimo feliz. Amei as fotos e o vídeo, sobretudo a saga, o que me inspirou esta crônica. Ufa! Ufa! Ufa!



André Batista e Novais Neto. Dique do Tororó, Salvador, Bahia. Foto: André Batista.

sábado, 2 de março de 2024

“Un cheval devant”

La réponse douce détourne la fureur, mais la parole dure suscite la colère. (Proverbes 15:1).

Ce samedi devait être ma journée de congé, mais une collègue, pour une raison quelconque, ne pouvait pas assurer sa permanence et je me suis engagé à la remplacer. Je suis parti tôt de chez moi. Comme je vis relativement près du lieu de travail, j’ai décidé d’y aller à pied, étant donné que le jour a débuté de manière agréable et accueillante.

Dans mon itinéraire se trouvait le Dique do Tororó, un véritable paradis avec son miroir d’eau majestueux reflétant les arbres luxuriants qui l’entourent. Et bien sûr, j’allais profiter de l’occasion pour faire mon “voyage” mental, “écrire” mes chroniques et contes, réciter à voix basse mes vers. Et c’est ce que j’ai fait.

Dique do Tororó - Salvador - Bahia - Brésil. Photo: Novais Neto.
Arrivé sur le site de mon labeur, au Service de Libération des Véhicules Saisis de Transalvador*, à 9 heures, l’accueil au public a commencé. J’étais déjà là, prêt à l’un des guichets, quand un homme et une femme bien habillés sont entrés, encore humides de leurs cheveux, leurs parfums embaumant agréablement tout l’environnement.

Le monsieur s’est dirigé vers mon bureau. Je l’ai salué, et lui, sans même me regarder, m’a répondu sèchement. Et de manière grossière, il a pratiquement jeté sur le comptoir le Formulaire de Saisie de Véhicule. Comme c’est la routine dans ce type de service, je lui ai demandé les documents du véhicule et le permis de conduire, quand j’ai entendu ces questions sonores et inattendues en guise de réponse:

— Vous êtes analphabète? Vous ne savez pas lire, hein?

J’ai inspiré profondément, baissé légèrement la tête et, avec beaucoup de calme que je ne sais d’où j’ai trouvé, je lui ai dit posément:

— Citoyen, vous êtes la première personne que j’assiste aujourd’hui. C’était le tour d’une collègue qui n’a pas pu venir. Vous n’avez rien à voir avec ça. Mais c’est tellement dommage que notre journée commence de cette manière. Donc, je vous demande les documents du véhicule et votre permis de conduire, s’il vous plaît.

— Le document de la voiture, vous l’avez aussi saisi.

À cela, il avait raison. Par négligence de ma part, je n’ai même pas remarqué que l’agent ayant émis le formulaire de saisie avait noté que le document du véhicule était annexé, c’est-à-dire qu’il avait été récupéré. Je suis alors allé au casier où se trouvent ces documents, j’ai pris le dossier et suis retourné calmement à l’accueil, quand cet homme a de nouveau pris la parole, cette fois-ci d’une manière un peu éduquée, peut-être pour exprimer des regrets pour les paroles acerbes qu’il m’avait adressées:

— Excusez-moi. Vous n’y êtes pour rien. Si ma voiture a été saisie, c’est exclusivement de ma faute, j’ai omis de payer la taxe de circulation. Et imaginez, lors de la première interaction de la journée, vous recevoir un “cheval devant”**?

Illustration: Adriel Santos. 2022.
— Non. Ce n’est pas ainsi que je le vois. Vous n’êtes pas un cheval**. Si j’étais à votre place, sans aucun doute, je serais contrarié, peut-être que je n’agirais tout simplement pas de cette façon. Mais bon, tout est bien, tout est pardonné, tout est réglé, ai-je répliqué, et il a continué:

— Avant de retirer ma voiture, j’aimerais la voir d’abord. Puis-je?

— Bien sûr.

Comme c’est aussi la procédure, je pouvais lui donner une autorisation pour qu’il la présente à l’agent responsable de la fourrière où sont entreposés les véhicules saisis, afin qu’il puisse voir sa voiture. Je ne l’ai pas fait. J’ai préféré l’accompagner moi-même. Arrivés là-bas, il a examiné attentivement son véhicule et nous sommes retournés à l’accueil, où j’ai émis un avis de paiement des frais de remorquage et de séjour.

Il est sorti pour payer. Quelque temps plus tard, il est revenu et je suis retourné au parking avec lui pour libérer la voiture. En chemin, il m’a de nouveau présenté mille excuses et a dit que ce n’était pas son comportement habituel. Cela a peut-être été le reflet d’une journée de travail épuisante dont il est victime, étant l’un des ingénieurs civils d’entreprises de construction, responsable de la construction de l’Arena Fonte Nova, avec des délais serrés pour sa conclusion. Et j’ai essayé de le comprendre d’une certaine manière.

La vie nous confronte à de multiples moments comme celui-ci pour tester notre patience d’une certaine manière. Si nous rendons les coups que nous recevons, ce ne sera certainement pas la meilleure option, car agir ainsi ne nous rapportera que des ressentiments, des rancœurs et des regrets.

Si cet auteur, d’autre part, avait agi différemment, il est certain que cette chronique n’existerait pas et, qui sait, elle ne servirait même pas, dans l’éventualité, de réflexion pour celui qui en aurait pris connaissance et déciderait de la mettre en pratique. De plus, et enfin, l’enseignement de la sagesse et du bon sens exprimé dans la célèbre phrase du poète maranhense*** Ferreira Gullar prévaudra souvent pour moi: “Il vaut mieux être heureux que d’avoir raison.”

[
Traduit en français par Diego Steeg et Celo Costa. Chronique originale en lanque portugaise disponible sur: https://www.novaisneto.com/2022/06/um-cavalo-pela-frente.html.]

Observations:

* Transalvador: La Surintendance de la Circulation de Salvador (Transalvador) est un établissement municipal relevant de la Mairie de Salvador, ayant pour mission de gérer le système de circulation de la municipalité, les parkings publics et d’exécuter les activités prévues par le Code de la Route Brésilien.

** “un cheval devant”: Dans la langue de l’auteur, le cheval désigne aussi une personne stupide, mal éduquée ou alors grossière.

*** maranhense: Fais référence à une personne originaire de l’état brésilien de Maranhão.

Réseaux sociaux de l’auteur:

https://www.novaisneto.com/
https://www.facebook.com/novaisnetto
https://www.instagram.com/novaisnetopoeta/
https://www.youtube.com/@novaisneto698/videos

domingo, 14 de janeiro de 2024

Ubirajara, o coronel mnemônico setaco

Quando o conheci, ele ainda era meninote de seus 12 anos de idade, filho de seu Clero e dona Mima, vindo de Itapetinga, a carregar o nome de um guerreiro: São Jorge. Era colega da minha irmã Nena, do primeiro ano ginasial, no Centro Educacional Santamariense (sic), que nós insistíamos chamar Ginásio Comercial. Eu cursava, à época, o segundo ano na mesma escola, que ficava pertinho da casa de seus pais, no mesmo logradouro, Rua Coronel Clemente de Araújo Castro, nome de um ex-prefeito.

Jorge ou Bira, já que seu nome é Jorge Ubirajara Pedreira, vira e mexe, estava na minha sala a conversar com as irmãs Maria Cristina e Maria Cláudia Lisboa Borba, amigas e vizinhas dele. De tanto isso acontecer, ele até aparece em uma foto da turma, de 1974, por ocasião de festejos juninos. Ele está indicado por uma seta e eu, a usar um chapeu de vaqueiro, amarelo.

Alunos do Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória. 1974.
Foi cursando o ginasial que Jorge Ubirajara, dono de nariz aquilino, irmão gêmeo do meu, recebeu o sugestivo apelido do personagem infantil Topo Gigio, simplificado pelos colegas, virou apenas Topa. Topa de Seu Clero e Dona Mima.

Além de sempre nos encontrarmos em sala de aula, ainda havia as aulas de Educação Física no campão, no então Estádio Wilson Barros, que depois foi renominado para Turíbio de Oliveira e, acompanhando o modismo futebolístico, virou Turibão, tão somente. Quando não era neste local, era num campinho que ficava na saída para Correntina, nas imediações do atual Centro de Abastecimento.

Vez ou outra, as aulas de ginástica eram realizadas no pátio do colégio, ministradas pelo genial professor de Matemática, Tércio Santana, Tutes, também meio-campista do Monte Castelo e da seleção santa-mariense. Nesta época, a escola não tinha quadra e as vezes tínhamos que ir para a quadra de Chiquinho, Francisco Alves da Silva, ex-prefeito da cidade, localizada nas proximidades da atual sede do Juizado de Pequenas Causas.

Isso não era bom, vivíamos que nem cigano: um dia num lugar, outro dia em outro, e muitos colegas acabavam perdendo aula. Não sei quem foi, mas alguém teve a ideia de nós mesmos ajudarmos na construção de uma quadra no colégio. E outro sugeriu que, nos dias de aula, levássemos pedra para começar a obra.

A ideia, que parecia boa, virou problema. É que ninguém, certamente, traria pedra de casa, iria, sim, catando pela rua. Muitos fizeram isso, outros, entretanto, viram uma construção por perto e levaram todas as pedras que podiam ser carregadas. No mesmo dia, o proprietário foi reclamar com a Direção do colégio, e a então diretora, dona Nena, nos fez devolver todas, até mesmo as encontradas pelo caminho. No entanto, apesar desse hilário acontecimento, a quadra virou realidade.

Ninguém queria mais perder aula de Educação Física. Por outro lado, se Tutes não pudesse ir, o italiano Ascenzo Venditti, Padre Enzo, marcava presença e nos ensinava exercícios respiratórios e de alongamentos, coisas nunca vistas por nós. Foram bons tempos de jogos de futebol de salão, ginástica e basquetebol. Tutes, nosso educador físico, montou dois times de basquete: um da própria escola e outro do Colégio Gonçalves Ledo, que rivalizavam, além de alguns times de futsal.

Topa fazia parte do time de basquete, e eu também. Nos treinos, tinha que ter uma bola só para ele, era fominha demais e “delegado”. Gostava de tentar cestas miraculosas que às vezes davam certo. Quando não davam, tomava bronca dos companheiros, mas tudo terminava em riso e gozação.

Há, dessa época, um acontecimento que não chegou a ser trágico e, hoje, tornou-se risível. Todas as manhãs das segundas, quartas e sextas, às 5 horas, enquanto esperávamos pelo professor Tutes, na frente do colégio, sempre aparecia algum colega distribuído pão quentinho. Todo mundo comia, nem que fosse um taquinho, inclusive Topa. E ninguém nem queria saber a origem do milenar alimento.

Dias depois, veio a reclamação de Tutes. É que alguém estava pegando os sacos de pães que o entregador deixava nas janelas das casas, como era hábito, inclusive da janela de Seu Clero, pai de Jorge. E aí veio o boato assustador: Seu Clero estava à espera do espertinho com uma espingarda de sal grosso. Desse dia em diante, alguns mudaram de calçada e outros mudaram até de rua.

Durante todo o curso ginasial foi isso. Eu continuei o segundo grau em Santa Maria, no mesmo colégio, cursando Técnico em Contabilidade. No ano de 1978, mês de agosto, mudei-me para Salvador, indo morar na recém-fundada Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória (Caes), localizada na Av. Joana Angélica, em frente ao Sesc. Topa chegou logo depois, a portar uma carta de apresentação, que foi exposta no mural da Casa pelo então presidente, o saudoso amigo Fernando Rosa Santana.

A carta era dispensada, já que cabia aos próprios estudantes, especificamente, a Direção, admitir novo morador a depender da existência de vaga, o que, naquele momento, não foi problema, mesmo já tendo a casa mais de 30 moradores secundaristas, pré-vestibulandos e universitários. Decorei a tal missiva, por gozação, e a transcrevo, a seguir, mesmo passadas mais de quatro décadas:

Reprodução da carta do Prefeito Tito Soares a Fernando Santana. 1978.
Pronto. O rapaz recomendadíssimo estava admitido, e não decepcionou nem o prefeito nem a nós, moradores da Caes, pelo contrário, só veio mesmo a somar. E muito.

No ano seguinte, 1979, houve eleições para escolha da nova Direção da Casa. Tito Gardel do Prado e eu fomos eleitos para presidente e vice-presidente, respectivamente. O primeiro, no entanto, aprovado que foi em concurso do Banco do Brasil, retornou a Santa Maria, e eu assumi em seu lugar. Eu também fui aprovado em concurso do Baneb (1979) e vestibular de Arquitetura (1980), na UFBA, e teria de ficar por aqui mesmo.

Não foi fácil, mas com a ajuda dos que queriam crescer na vida, dos que sonhavam com novos horizontes, as coisas foram facilitadas, inclusive por Jorge, que foi, juntamente com José Gregório, meus secretários de alimentação. Nesta ocasião, Jorge era estudante do Colégio da Polícia Militar. E dessa época, também, há um inapagável acontecimento, pelo menos para mim.

Caderno com anotações da Casa de Estudante de Santa Maria da Vitória. 1979.
Uma das vantagens em morar na Casa era que, no que se refere às disciplinas escolares, ninguém ficava com dúvida em algum assunto. Sempre havia alguém que sabia e ajudava a esclarecer. Neste grupo, no qual me incluo, além de Renan, Gregório, dentre outros, para as disciplinas Matemática, Química e Física eram as que mais nossos colegas pediam socorro.

Certa vez, véspera de uma prova de Matemática, do Colégio da Polícia Militar, cujo assunto era Trigonometria, Jorge me pediu ajuda porque não estava conseguindo memorizar, quando seno, cosseno e tangente eram positivo ou negativo nos quadrantes de um círculo trigonométrico. Ensinei-lhe direitinho, utilizando-me de um recurso mnemônico facilitador da decoreba.

— Olha, Jorge, construa um quadro com 3 colunas e 2 linhas. Em cima, coloque, nesta ordem: seno, tangente e cosseno (SeTaCo), e não na ordem como a gente aprende nas aulas — frisei bem e continuei — e, na linha de baixo, escreva os números 12, 13 e 14. E disse mais:

Círculo trigonométrico e quadro mnemônico. Elaboração: Novais Neto.
— Feita a tabela, isso significa que seno é positivo no primeiro e segundo quadrantes; tangente, no primeiro e terceiro; e cosseno, no primeiro e quarto. Nos demais quadrantes, os faltantes, eles são negativos obviamente, assim: como seno é positivo no primeiro e quarto quadrantes, é negativo no segundo e terceiro; como tangente é positivo no primeiro e quarto, é negativo no segundo e terceiro; como cosseno é positivo no primeiro e quarto, é negativo no segundo e terceiro — e finalizei as dicas mnemônicas com o tradicional “entendeu, Topa?”.

Topa saiu sorridente, dando pinotes de alegria, a parecer um meninão, e soltou a voz:

— Agora, vou matar a pau! — e foi para o quarto estudar mais. A prova seria no outro dia, na parte da manhã.

Por volta do meio-dia, do dia seguinte, ele me encontrou, agradeceu e disse:

— Matei a pau, Nó. O professor botou umas três questões do assunto.

Os dias passaram e, num deles, Jorge chegou revoltado, me xingando todo, dizendo que eu havia lhe ensinado errado, e que aquele negócio de SeCoTa estava errado, e que deu tudo ao contrário, e coisa e tal. O homem estava uma fera, coisa rara.

Tomei um susto e repeti, pausadamente, o que ele me disse:

— Se… Co… Ta, Topa? Eu lhe falei Se… Ta… Co. Esqueceu? Pirou de vez, foi? Olhe no seu caderno e veja o que está escrito. Meu Deus do céu, por isso se deu mal!

Jorge nem fez isso. Levou apenas as mãos à cabeça e saiu cabisbaixo. Quem estava presente e conhecia o assunto, não deixou de sorrir. De vez em quando, alguém, relembrando o ocorrido, lhe chamava de Secota, mas o apelido não vingou. Muitos, certamente, já esqueceram tal episódio… Menos eu.

Já como aspirante da PM baiana, nos duros anos de 1980, quando as greves eram reprimidas com toda força, num desses momentos, eu, empregado do Baneb, e Renê, primo e morador da Casa do Estudante, funcionário do Banco Econômico, encontramos Jorge a comandar a Cavalaria num desses embates no bairro do Comércio. Ele já não morava mais na residência estudantil.

Renê, sempre muito brincalhão, em tom de graça, lhe advertiu:

— Deixa quando você descer desse podói, desse pangaré feio, e for ver a gente na Casa do Estudante, cê vai ver  que é bom pra tosse. Não foi isso que nós lhe ensinamos — Jorge apenas abriu um largo sorriso, pois conhecia muito bem o bom humor e as brincadeiras de René.

O menino Jorge de Seu Clero e Dona Mina cresceu, progrediu e retornou a Santa Maria da Vitória, nossa querida Samavi, já como Capitão Ubirajara. Ficou por lá algum tempo e voltou a Salvador, porém sempre retornando em suas férias.

Novais, Jorge e Glécia Almeida. 2016.
No ano de 2016, por ocasião do aniversário de Santa Maria da Vitória, 26 de junho, encontramo-nos num evento na Câmara dos Vereadores. Eu, para receber a Medalha do Mérito Literário Osório Alves de Castro e Jehová de Carvalho, e ele, Jorge Guerreiro, para receber o Título de Cidadão Santa-Mariense. O que já era de fato, de direito, se tornou.

Finalmente, a Casa do Estudante de Santa Maria da Vitória, nossa inesquecível Caes, que formou advogados, historiadores, engenheiros civis e químico, educadores, administradores, analista de sistema, educador físico, geólogo, médica veterinária, agrônomo, químico analista, contador, dentre outros, tem agora seu coronel, coronel “cheio”, que atende pelo nome de Jorge Ubirajara Pedreira, para muitos. Para nós, seus amigos mais “chegados”, de infância, ele é simplesmente Coronel Topa. Agora e Sempre! [Atualmente, com méritos e honrarias, desfruta sua aposentadoria].

Praça do Jacaré: Hermes, Renan, Novais Neto e Jorge. 1980.

Em tempo:

Esta crônica foi publicada no Matutar em 16/5/2017, onde também está disponível no link: https://www.matutar.com.br/comportamento/coronel-mnemonico-setaco/. Acesso em: 14/1/2024.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...