sábado, 4 de junho de 2022

"Um cavalo pela frente"

A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira. (Provérbios 15:1).

Aquele sábado seria meu dia de folga, mas uma colega, por alguma razão, não poderia cumprir seu plantão e eu me comprometi a substituí-la. Saí bem cedo de casa. Como moro relativamente perto do local de trabalho, decidi ir andando, já que o dia amanheceu bonito e convidativo.

No meu itinerário, estava Dique do Tororó, um verdadeiro parnaso com seu magistral espelho d’água a refletir as frondosas árvores que o circundam. E, logicamente, aproveitaria a ocasião para fazer minha “viagem” mental, “escrever” minhas crônicas e contos, declamar baixinho meus versos. E foi o que fiz.

Já no local da minha jornada, no Setor de Liberação de Veículos Apreendidos, da Transalvador, às 9 horas, o atendimento ao público foi iniciado. Eu já estava ali a postos em um dos guichês, quando entra na sala um homem acompanhado de uma mulher, ambos bem vestidos, cabelos ainda úmidos, a exalarem olores de seus perfumes que se espargiram agradavelmente em todo o ambiente.

O senhor dirigiu-se a minha bancada. Cumprimentei-o, e ele, sem ao menos olhar para mim, respondeu-me secamente. E, de forma tosca, praticamente atirou sobre o balcão o Termo de Apreensão de Veículo. Como é de rotina neste tipo de atendimento, lhe pedi o documento do veículo e a carteira de habilitação, quando ouvi estes sonoros e inesperados questionamentos como resposta:

— O senhor é analfabeto? Não sabe ler, não?

Inspirei profundamente, baixei ligeiramente a cabeça e, com bastante calma, arranjada não sei onde, disse-lhe de maneira pausada:

— Cidadão, o senhor é a primeira pessoa que estou atendendo hoje. O plantão era de uma colega, que não pôde vir. O senhor não tem nada a ver com isso. Mas é tão ruim que o dia da gente comece dessa forma. Portanto, eu lhe peço o documento do veículo e a sua habilitação, por favor.

— O documento do carro vocês prenderam também.

Nisso, ele estava com razão. Por descuido meu, nem observei que o agente lavrador do termo de apreensão havia anotado que o documento do veiculo estava anexo, isto é, fora recolhido. Fui então ao armário onde ficam tais documentos, peguei o processo e retornei calmamente ao atendimento, quando aquele cidadão voltou a manifestar-se, agora, de maneira um tanto educada, a demonstrar, talvez, arrependimento pelas palavras ácidas a mim dirigidas:

— O senhor me desculpe. O senhor não tem nada com isso. Se meu carro foi preso, a culpa foi exclusivamente minha, que deixei de pagar o licenciamento. E já pensou, num primeiro atendimento do dia, o senhor receber de cara um cavalo pela frente?

Ilustração: Adriel Santos. 2022.
— Não. Não é bem assim que penso. O senhor não é um cavalo. Se eu também estivesse no seu lugar, sem dúvida, estaria chateado, talvez só não agisse dessa forma. Mas tudo bem, tudo superado, tudo zerado — retruquei e ele continuou:

— Antes de tirar meu carro, eu gostaria de ver primeiro como ele está. Posso?


— Claro que sim.

Como também é de rotina, eu poderia dar-lhe uma autorização para que ele a apresentasse ao agente responsável pelo pátio onde ficam os veículos recolhidos, a fim de que pudesse ver seu automóvel. Não o fiz. Preferi eu mesmo o acompanhar. Lá chegando, ele olhou detalhadamente seu veículo e voltamos ao atendimento, onde emiti um boleto bancário para pagamento de remoção e estadia.

Ele saiu para pagar. Tempos depois, retornou e fui novamente ao pátio com ele para liberar o automóvel. No trajeto, novamente pediu-me mil desculpas e disse que esse não é seu comportamento habitual. Talvez tenha sido reflexo de extenuante jornada de trabalho de que é vítima, visto ser ele um dos engenheiros civis de empreiteiras, responsável pela construção da Arena Fonte Nova, que têm prazos exíguos para sua conclusão. E eu procurei de alguma forma entendê-lo.

A vida nos apresenta múltiplos momentos como este para testar de alguma forma nossa paciência. Se devolvermos com pedra as pedradas recebidas, certamente não será a melhor opção, porque, se assim agirmos, isso só nos renderá ressentimentos, mágoas e arrependimentos. 

Se este autor, por outro lado, agisse de modo diverso, é certo que esta crônica inexistiria e, sabe-se lá, ela nem serviria, numa eventualidade, de reflexão para quem da mesma tenha tomado conhecimento e resolvesse pô-la em prática. Ademais, e finalmente, quase sempre prevalecerá para mim o ensinamento da sabedoria e da sensatez expressas na memorável frase do festejado poeta maranhense Ferreira Gullar: “É melhor ser feliz do que ter razão”.

26 comentários:

  1. Meu querido amigo, como é bom ler seus escritos! Esse, traz uma boa reflexão, um ensinamento para a vida. Eu também encontro "cavalos" em meu ambiente de trabalho. De alguns, eu sorrio do modo do coice, de outros, suspiro fundo. Assim vamos levando...

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  2. Bom dia, meu amado amigo!🌹
    Maravilhoso texto para refletirmos! Eu tenho sorte de mim deparar com pessoas "grossas assim", confesso que eu não deixo barato não.🙏

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  3. Novais, vc agiu certo. Quisera eu ter essa paciência de receber um coice e não retribuir. A lei de Talião deixa muita gente feliz mesmo sem razão. Rsrsrsrsrs.

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  4. Bom dia querido!
    Muito boa, mas tem dias no trabalho que enfrentamos alguns "cavalinhos".

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  5. Bom dia Nil, muita calma e paciência em lidar com a agressividade alheia é excencial e sempre desarma o agressor.

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  6. Vc foi sábio meu amigo e ele teve a humildade de reconhecer o seu próprio erro e pedir desculpas,acho q é por aí,se todos nós tivéssemos a cabeça fria nessas horas, certamente tantas tragédias seriam evitadas.Um grande e carinhoso abraço,poeta!

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  7. Sim Novais se reage da mesma forma está sendo parecido com o agressor, e tudo na atitute do outro que nos atinge muito é porque existe algo desta condição dentro de nós mesmos seja o orgulho, o poder de ofender, a intolerância.Esta é uma das leis de
    semelhança .
    Mas é enganoso a comparação com o cavalo que é um animal inteligente,sensível, obediente, dificilmente agressivo a não ser reagindo a estupidez humana.

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  8. Você foi hábil na forma de conduzir e por conta disto o outro se desculpou.

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  9. Bela reflexão meu amigo, já passei por uma situação o quanto parecida. Abraços

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  10. Parabéns pela sabedoria em agir em momentos como estes.

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  11. É por ai que devemos seguir,só com calma desarmamos a violência que é característica desse século de ansiedade.Continue sempe assim ,só tem a ganhar

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  12. É isso mesmo amigo. Atendimento ao público acontece situações que temos de saber segurar a barra!!!

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  13. Adorei , e já estava com saudades dos seus contos. A ilustração está perfeita! Abraço amigo 🥂

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  14. Perfeito para refletirmos sobre nossas atitudes.

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  15. Legal Novais, tentarmos sermos mais ativos que somente reativos. E no caso desse senhor, que bom que ele tenta reconhecer a irá nele e dialoga com ela, dez! Valeu!👏👏👏👏

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  16. Trabalhar com público não é fácil! Estou a dois dias sem dormir porque não dei resposta adequada para ela. Estou entalado! Pra não acontecer pela quarta vez, pois não serei educado.

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  17. Muito bom Novais. Parabéns meu amigo.!

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  18. Parabéns, meu amigo pelo texto.
    Realmente casos como este acontece no nosso dia-a-dia, principalmente quando prestamos serviços diretamente ao público. Você foi muito feliz em não ligar pela resposta do senhor, o qual estava muito nervoso. Por fim tudo terminou bem.
    Um grande abraço.

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  19. Que maravilha, amigo. Bendito aquele que consegue agir sem reagir. Abraço, poeta.
    Quem escreve é Celo

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  20. É Figurinha, lidamos com situações como essa sempre. Trabalhar com gente, tem dessas coisas! Mas, quando me deparo com pessoas assim, procuro tratá-lo (a) como você fez... "o mau com o bem se paga". Ferreira Gullar tá certíssimo “É melhor ser feliz do que ter razão”. É melhor tem paz, também! Rs

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  21. É, sim sinô, moço. Uma resposta educada e inteligente leva a derrocada de qualquer gente. Um abraço, amigo Novais.

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  22. É, vejo que saiu como anônimo, mas sou eu mesmo, visse? O Cícero de "penúria em um Sertão"

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  23. Muito bom. UMA ótima reflexão para muitos que agem de forma grosseira em nosso cotidiano. Sermos educados e solícitos por certo faremos o outro mudar de postura .

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  24. (Valdeci Silva) obrigada colega Novaes por essa reflexão. O interessante foi que o próprio cavalheiro, digo (cavaleiro rsrsr), que buscou atendimento, se intitulou como um agressor cabalístico, demonstrando comportamento inadequado que provavelmente nenhum ser animal teria, pois os domesticados são dóceis, amigos, companheiros, tão bem educados que são, mas você provou mais uma vez que "gentileza gera gentileza", E de forma simples e engraçada nos presenteou com essa rápida narrativa de um episódio cotidiano de trabalho. Valeu mesmo.

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  25. Como sempre, muito bom, parabéns amigo!

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  26. Isso aí meu amigo, que bom q conseguiu respirar fundo e relata de forma singular nesta crônica. tb a percepção de q nem sempre o cara de cavalo é de todo errado...

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Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...