sábado, 1 de outubro de 2022

Corujice explícita

Atenção para o nome: Lara Rodrigues Santos de Novais. É bom gravar, principalmente, o final “de Novais”. Este é o nome completo da protagonista desta crônica. Garotinha de sorriso fácil, entre 2 e 3 anos de idade, universo vocabular incipiente, sui generis e recheado de lambdacismos. Atualmente, ela está com 26 anos.

Segundo o filólogo Napoleão Mendes de Almeida, lambdacismo é a troca, na pronúncia, do “r” pelo “l”, assim como faz Cebolinha, de Maurício de Sousa. O contrário é o rotacismo, como, por exemplo, em vez de a pessoa dizer Cláudio e Clóvis, ela diz Cráudio e Cróvis.

Explicações à parte, aos sábados, quase sempre estamos lá, na casa dos avós maternos de Lara: Seu Naeth e Dona Dedé. Numa dessas idas, encontramos Seu Naeth afundado num sofá, óculos na ponta do nariz, quase a cair, em frente a uma televisão com o volume nas alturas, rodeado de revistas e jornais amassados que, ao ver a netinha, vai logo exigindo:

– Dê cá a bênção, menina véia.

Ela, toda cheia de dengo, aproxima-se, estira o braço e, timidamente...

– Bença, vô.

– Deus te abençoe, menina véia.

Só que não para por aí. Seu Naeth começa, então, a explorar o pequeno vocabulário da netinha, partindo para uma sessão de “atasanamento”:

– Como é o seu nome, menina véia?

A pequena Lara, no meio da sala, cercada de badulaques e cinco bonecas Barbie, de cores e/ou cabelos diferentes, de procedências e qualidades duvidosas, certamente introduzidas no país através do Paraguai pelos “executivos de fronteira”, não lhe dá a mínima atenção, já que seu mundo de fadas e duendes é muito mais interessante. Mesmo assim, ela responde:

Lara Novais, Naeth Santos, Márcia Gomes e Keully Pêpe. Fotos: Novais Neto, déc. 1990

– Num sei, não, vô.

– Como não sabe, menina véia. Uma menina desse tamanho não sabe o nome...

– Num sei, não – repete ela mais uma vez, já a perder a paciência.

Mas ele é insistente. E lá pela quarta ou quinta vez, repete a pergunta:

– Co-mo é seu no-me, me-ni-na véi-a? – falando agora pausadamente.

– Lala Lodligues Santos “de Meu Pai”. E plonto – viu onde foi para o “de Novais”?

É sempre assim: inventa uma palavra, distorce outra, engancha em certas pronúncias e vai construindo o seu dicionário mental. Quantos às bonecas Barbies, os nomes seguiam as vogais do nosso Alfabeto: Zazá, Zezé, Zizi, Zozó e Zuzu. Dessa forma, ficou bem mais fácil memorizar essas letras.

Certa ocasião, quando retornei de Santa Maria da Vitória, trouxe-lhe uma ruma de novidades, principalmente, frutas silvestres como pitomba, cagaita, procopa, grão de galo, bananinha de macaco, e pedi a Márcia, a babá, que lavasse um umbu e lhe desse, para que ela pudesse experimentar. E assim foi feito.

Percebi que Lara gostou da novidade. Pedi novamente a Márcia que lhe oferecesse mais alguns umbus.

– Toma, Lara, umbu – ofertou-lhe a babá, com todo carinho.

– Um bu, não, Márcia. Você me deu tlêis bus. É assim, Márcia: um bu, dois bus, tleis bus – ensina professorinha com a lógica do seu entendimento.

Da mesma forma ela analisa as palavras “um bigo”, “dois bigos”, “três bigos”. “Um berto”, “dois bertos”, “três bertos”... e assim por diante.

No trajeto da escola, no entanto, é que surgem as novidades. Curtir esses momentos é algo único na vida de quem teve o privilégio de ver crescer essas pequeninas criaturas. É formidável sentirmos como elas percebem e procuram entender o mundo dos adultos. O seu mundo é simples, belo. E mágico, sobretudo.

Ao trazer-lhe da pré-escola, certa feita, ela virou-se para mim e disse que iria me contar um segredo. Naturalmente, fiquei atento para ouvir a confissão de Lara. Antes, porém, ela me fez um solene pedido... Aliás, não vou revelar o pedido agora, creio que perderá a graça. Vamos adiante.

Todos nós, é provável, já ouvimos perguntas do tipo: “Você sabe qual é o cúmulo da força?”. “O cúmulo da força é dobrar uma rua e quebrar uma esquina”, responderá o indagador. “E qual é o cúmulo da lentidão?”. “O cúmulo da lentidão é disputar uma corrida sozinho e chegar em segundo lugar”. Desse modo, existem o cúmulo da estupidez; o cúmulo da rapidez; o cúmulo da agonia etc. Mas isso fica para um momento oportuno.

De volta ao segredo, Lara apresenta-me um novo “cúmulo”, o “cúmulo da confidência” ou “cúmulo do segredo”. Isso aconteceu quando ela me pôs no incômodo lugar de algum padre, que não me foi possível identificá-lo, que teria proferido esta frase em que ele nos garante: “Tudo aquilo que me é revelado em confissão, eu sei menos do que aquele que nada soube”. Ela, então, fitou-me os olhos e, de forma cerimoniosa e solene, fez o seu pedido:

– Meu pai, eu vou contar um segredo pro senhor, mas, por favor, meu pai, não conte esse segredo pra ninguém! Nem pra mim. O senhor entendeu? – e Lara confidenciou-me o segredo dos segredos.

Você quer saber qual foi o segredo? Perdoe-me. Sinceramente, eu não me lembro de nada do que me foi dito. Tornei-me, imperativamente, um extemporâneo vigário.

*   *   *

Agradecimento especial ao colega e amigo Luís Cláudio de Lima Pinto, por lembrar-me que seu nome, vez por outra, é vítima de rotacismo, por isso, avisa: “Olha, meu nome é Cláudio e não Cráudio, viu?!”.

Quem sou

Crônica da luz intermitente

Aquele teria que ser um dia muito especial, bem fora da minha rotina. Foi 1º de maio de 2024, algo bem recente, Dia do Trabalhador e dia dos...