sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

“Burro calado é um sábio”

Há pessoas que dedicam tanto sua vida à defesa dos animais, dos pobres animais, que a história se encarrega de eternizá-las. Inúmeras são essas pessoas que, felizmente, a pretexto desta crônica, é sempre bom lembrar de alguns nomes famosos e de pessoas comuns integrantes deste seleto grupo.

São Francisco de Assis, o patrono da Ecologia, protetor dos animais e das plantas, os quais ele chamava de “meus irmãos”, segundo contam, tinha até o dom (e privilégio) de falar com os bichos. Brigitte Bardot, premiada atriz francesa, militante pelos direitos dos animais, tem lugar destacado, além dos destemidos integrantes do Greenpeace na diuturna defesa das espécies ameaçadas de extinção.

No Brasil, os irmãos Vilas-Boas e Chico Mendes não podem ser esquecidos, dentre outros. Como também merece ser citado, não que tenha sido necessariamente protetor dos irracionais, o ex-ministro do Trabalho, da Era Collor, Rogério “Imexível” Magri. Segundo noticiou a mídia da época, ao ser flagrado e interpelado por um repórter, porque estaria levando seu cão ao veterinário em veículo oficial, ele teria respondido enfaticamente:

— Cachorro também é ser humano!


Um acontecimento, entretanto, mais próximo às pessoas que me rodeiam, foi-me narrado por um amigo coribense. Segundo ele, Hermes, meu irmão, ao passear pela feira livre na cidade de Coribe, Extremo Oeste baiano, deparou-se com um homem vendendo uma guariba. Guariba é uma espécie de macaco, também conhecido por barbado ou bugio, catalogado entre os animais ameaçados de extinção.

Hermes ficou penalizado ao ver o infeliz símio, uma fêmea, amarrada pela cintura, a gritar desesperadamente, tentando soltar-se. Indignado, perguntou àquele senhor quanto queria pelo bicho.

— Cinquenta real — respondeu secamente o feirante.

Meu irmão consultou a carteira e viu que não dispunha daquele montante. Pediu ao amigo acompanhante que o aguardasse ali mesmo na feira, enquanto ele iria providenciar a grana.

Valendo-se da sabedoria popular que assegura: “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro no bolso”, saiu em busca desse amigo e, sem muita dificuldade, já que naquele rincão ele os tem muitos, logo retornou com o dinheiro contadinho.

Comprou a sofrida macaca e, com o mesmo amigo que o acompanhava na feira, partiu para os Gerais, lá para as bandas de Correntina, onde iria soltá-la.

Aliviado e feliz, ao chegar ao destino planejado, bem no seio do habitat daquele sofrido e maltratado primata, livrou da corda a pobre macaquinha e devolveu-lhe a liberdade tão brutalmente arrancada.

Outro episódio, não dramático e comovente com este, porém a beirar o pitoresco, capaz de provocar frouxo de riso, a vítima desta vez foi exatamente este que escreve.

Tenho uma amiga de longas datas, Dina Marchesini, protetora fervorosa dos animais, que chega a valer-se da famosa frase creditada ao poeta português Alexandre Herculano, que teria dito: “Quanto mais conheço os homens, mas estimo os animais”, para justificar o amor que ela dispensa pelos bichos, principalmente aos cães e gatos.

Ela é médica pediatra, professora acadêmica, conhecedora profunda da Homeopatia e seguidora e praticante dos ensinamentos do médico alemão Samuel Hahnemann, pai daquela especialidade médica, fez-me, certa ocasião, vítima das minhas próprias brincadeiras, que ela tão bem as conhece.

Um dia qualquer, à noite, ao digitar uma aula que ministraria a seus alunos de pós-graduação, na UFBA, não havia jeito de eu entender o que ela me explicava. Tentou, tentou, até que determinada palavra por ela pronunciada ativou-me os neurônios adormecidos e, em tom de gozação, exclamei:

— Vixe Maria, eu sou é um jumento mesmo! — foi tão somente o que disse.

Dina olhou-me fixamente por alguns instantes. E eu fiquei até a pensar, como seria natural, que ela fosse me defender e dizer que apenas não entendi ou — sei lá! — que houve falta de clareza da parte dela. Mas não. Ela continuou a olhar-me detidamente e em tom de reprovação, discursou serenamente:

— Ô, meu Deus do Céu, porque tudo que não presta neste mundo vai pra conta deste pobre coitado? Logo ele, nosso irmãozinho inferior, que carregou Nosso Senhor Jesus Cristo nas costas! O jumento é um animal sagrado! Pelo amor de Deus, ele não merece isso, não! Tem dó!

Fiquei sem ação, absorto. Mentalmente, até cogitei corrigir-me e dizer que eu não era um jumento, mas, um burro. Percebi, entretanto, que o burro também é animal e aí o tiro poderia sair pela culatra. Nesse caso, o mais prudente seria ficar calado. E foi o que fiz. Afinal de contas, “burro calado se torna sábio”, ensina-me a oportuna máxima popular.

Lembrei-me — e só fiz lembrar mesmo! — do nosso inesquecível Luiz Gonzaga, Seu Lua, o Rei do Baião, que soube por certo agradar à minha amiga, quando afirma categoricamente em uma de suas memoráveis composições, juntamente com o amigo Zé Clementino, que “O Jumento é nosso irmão”.

“Seu Lua, Seu Lua, por que não fui me lembrei disso antes?!” 
—  mental e tardiamente lamentei.

Foto: Reprodução / Internet.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Tertúlia flácida para acalentar bovídeo

Não é a intenção desta crônica testar o vocabulário do leitor, longe disso, mas você sabe o que vem a ser um sujeito indobeclível? E uma pessoa sub-relevapes, o que será, afinal de contas?

Certamente não sabe e jamais saberá. Dicionarista algum registrou estes termos. Mas eles existem. Não têm sinônimos. São adjetivos comuns aos dois gêneros. Servem tanto para elogiar quanto para desqualificar alguém. São “paus pra toda obra,” no prolóquio popular mais adequado.

Esta é uma das facetas da nossa Língua Portuguesa: idioma de origem românica, filha benquista do Lácio, a brindar-nos um horizonte de belas palavras. Peca, talvez, por não ser tão técnica e objetiva como o Inglês ou Alemão, por exemplo. Ganha, porém, em sonoridade e plasticidade só comparável a outras línguas de origem latina. Poucos são os privilegiados que a manejam com delicadeza e arte ao deixarem fluir frases grandiloquentes que ecoam como canção de ninar.

É o que acontece, por exemplo, com aquele preciosista incorrigível que, a propósito de comentários sobre eclipse, esnobou a perífrase vernacular: “na pretérita centúria, meu progenitor presenciou o acasalamento do Astro-Rei com a Rainha da Noite”, em vez de simplesmente dizer: “no século passado, meu avô viu o eclipse solar”.

Quando esse mesmo amante-complicador do óbvio e simples chega a um boteco e pede que lhe sirvam “uma solução aquosa de rubiácea”, em lugar do apreciado cafezinho. Se deseja haurir uma cervejinha, suplica “um fermentado gélido de Hordeum vulgare”.

O mesmo refinado e preciosista cidadão não poupa sequer nosso líquido universal — a água. Uma vez sedento, para pedir um simples gole de água, solicita um copo de “protóxido de hidrogênio”, o que nos remete às aulas de Química Inorgânica dos tempos estudantis.

Certa vez, envolvido em discussão que não lhe convinha, exatamente aqueles bate-bocas que não chegam a lugar algum, como diríamos: “conversa mole para boi dormir” ou “tertúlia plácida para levar bovídeo aos braços de Morfeu”, vociferou: “vamos parar com esse colóquio flácido para acalentar bovino”. E até mesmo para referir-se à batida frase “cada macaco no seu galho”, ele prefere o circunlóquio: “cada símio na ramificação arbórea que lhe compete”. Que chique, não é?!

Boi dormindo. Jão. 2021.
Outros, entrementes, à margem das belezas do nosso vernáculo, entretanto admiradores dos bons falantes, chegam a criar palavras, mergulham fundo em neologismos e deixam boquiaberto a quem flagrasse, por exemplo, Baiano e Sinhô simularem uma contenda.

— Sinhô, você não presta. Você não passa de um safado sub-relevapes.

— E você, Baiano? Você é um pé-inchado subsindiques, um pau-d’água-de-marca-maior, isto sim!

— Sabe de uma coisa: vamos parar com isso. Vamos deixar de muita renoclênia, porque o que somos mesmo é um bando de intratapes — finalizou o sempre magníloquo Baiano.

Bem cedo eles se foram. Adejaram céleres, num atro dia, para um mundo inconcebível e incognoscível, lugar, por certo, onde sua linguagem louçã e enigmática encontrará ouvidos que melhor os entenderão.

Baiano, depois de uma noitada etílica, afogou-se nas águas do Rio Corrente, em Santa Maria da Vitória, no rosicler da manhã. Enquanto Sinhô, sorumbático e inconsolável, apartado abruptamente do inseparável amigo, despediu do mundo — também afogado — no mesmo aziago dia, à tarde. E lá se foram os amigos indobeclíveis e sub-relevapes, vítimas da dipsomania.

Salvador do Mercado, folgazão e piadista contumaz, num piscar de olhos, fez verdadeira a máxima popular quando se refere à amizade sincera e despretensiosa:

— Isso é que são amigos! Até debaixo d’água!

Finalmente, somente para deleite, apreciemos o soneto por título “A uma deusa (O quelso)”, atribuído ao poeta maranhense Luís Lisboa, em que ele usa e abusa de neologismos e bestialógicos, quase sempre por força de rimas ou diversão mesmo:

Tu és o quelso do pental ganírio,
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólio do bocal empírio
Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomogenério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,
De lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbânceas do pental perônio.

Viram só! Inventar palavras não é privilégio apenas de Baiano e Sinhô. Gente letrada também gosta de falar difícil e muitas vezes nada dizem. Gente sabida também pode ser vaniloquente.


A propósito, os termos rebuscados utilizados nesta crônica, raramente ouvidos no falar cotidiano, foram a forma encontrada de deixá-la de acordo com as perífrases, sobretudo lembrar Baiano e Sinhô, e não derramar inutilmente palavras difíceis para demonstrar falsa erudição.

Referências:

CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 4. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ediouro, 1989. 180p. (vide soneto “A uma deusa ou O quelso”, de Luís Lisboa, p. 30).

COLLETI, Cesar. Poesia a uma deus. Jornal da Franca. Ano 6, n. 2137. Disponível em: <https://www.jornaldafranca.com.br/poesia-a-uma-deusa/>. Acesso em: 6 set. 2021.

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Ed. do Autor, 2009. 164p. (vide crônica Tertúlia plácida para acalentar bovídeo, p. 153).

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O fim do mundo já passou

Desenhava-se, naquela manhã de tempos idos, mais um rotineiro sábado de feira como muitos outros haviam sido: eu e Hermes, meu irmão, ali na sapataria, à espera de algum brejeiro para consertar, lustrar ou repregar calçados. Ou, ainda, fazer “cubação de terra” e ganhar uma grana extra para gastar nas matinês do Cine União, dos irmãos Rocha, Lolô e Rosi, nos circos comuns, circos de touradas ou nos parques de diversões muito comuns à época.

E “cubação de terra”?! Que troço é esse? Explico: cubação nada mais é senão o cálculo da área de um terreno, roçado ou plantado por trabalhadores rurais, que devem receber remuneração, em moeda corrente, proporcionalmente à quantidade de “tarefas” beneficiadas. Tarefa, por sua vez, é medida de área ainda muito utilizada no interior baiano.

Explicações à parte, os consertos que fazíamos eram bem aceitos e rendiam alguns trocados. Nossos cálculos, todavia, suscitavam descrença, pois a brejeirada não cria muito em nós e, vez por outra, voltava sorrateiramente para ter o aval do nosso pai. Além do mais, se feito por ele, o pagamento se resumia a um “Deus lhe pague”, mas comigo ou meu irmão, via-se no dever de “fazer um agrado”.

Novais Neto, Nélson Neves, Glécia e Tião Sapateiro. 1978
O dia sabático, portanto, transcorria normalmente. Eu já havia feito alguns consertos, repregado umas botinas e me preparava para ir à feira comer queca de Chiquinho Boca Aberta, talvez brevidade de Zelino Jega Véia, ginete, ximango e beber QSuco de groselha, garapa de cana ou a deliciosa gasosa, bebida preparada com bicarbonato de sódio. E e
is que, de supetão e espavoridos, surgem na porta da tenda três senhores. Dois, do meu conhecimento, eram Chico Bate-Pau e Péto, espécie de ajudante da Polícia Militar. O primeiro, primo da minha mãe, e o outro, a tiracolo deles, um velhinho por nome Antão, que também eu o conhecia de vista.

— Tião, Tião, o fim do mundo tá perto. Assunta o que assucedeu cum ovo dessa galinha. Quando vi, fiquei mei descalqueado. Mostra pra ele, Seu Antão — ordenou Chico Bate-Pau.

— Deixa de patacoada, Chico! Cê num tem o que fazer, não? Vai caçar o que fazer. Tá caçoando comigo, Chico? Tá fazendo-se de besta? Mas, xô ver essa geringonça aí, Seu Antão. Decá esse troço aí. Xô ver se num é cadelagem de algum capadócio trampolineiro.

Seu Antão apeou de uma égua descanelada, meio arisca, tirou do embornal uma pequena caixa de remédio amarrada com embira e, desta, com muito cuidado, um ovo envolvido em chumaços de algodão, que passou às mãos do meu pai:

— Taí, Seu Tião, me explique que milagre é esse ou nois tamo é campado. Tá parecendo coisa do fim do mundo, da besta-fera — desafiou o brejeiro.

Eu, que estava ali em pé a curiar tudo, pude ver que no ovo havia umas inscrições com letras invertidas verticalmente
 como se estivesse em frente a um espelho plano. Dentre elas, era possível claramente visualizar esta frase: “roma è sueD”. Confesso que aquilo, sem dúvida alguma, me deixou com a pulga atrás da orelha, porque também não entendi patavina de nada.

Meu pai, sem dar qualquer explicação antecipada, foi logo indagando:

— Seu Antão, o sinhô mora onde? É aqui por perto?

— Moro lá na ponta da rua, dispois da casa de João Fulosoro, dispois do Pingo d’Água, de junto da tapera de Chico Tutano e da capoeira de Zé Carretão. Tem até um pé de pau bem no eitão da casa, um pé de madeira-nova sombroso. Pru que, Seu Tião, ocê quer ir lá ver?

— O sinhô pode me mostrar o ninho dessa galinha, Seu Antão?

— Prefeitamente. Quer ir lá cumigo? Vambora agora, é nesturinha mermo, sem puxa-encoe!

E lá fomos nós. Um pouco à frente, meu pai e Seu Antão, calados. Chico Bate-Pau, Péto e eu, encambados atrás sem entender o porquê de o meu pai querer ver o ninho dessa tal galinha poedeira de ovo mensageiro do fim das eras, do outro mundo.

Quando chegamos à casa do velhinho Antão, como é de costume, ele nos ofereceu um cafezinho em copos esmaltados, que quase me pela a língua. Em seguida, nos levou ao quintal: um terreirinho bem simples, varrido, cercado de varas com casca de ovos nas pontas, algumas galinhas pedrês, um chiqueiro de porcos piaus, 
feito de achas de aroeira, um jirau com cebolinha, coentro e salsa. Em outro jirau, uma casinha com o ninho onde havia encontrado o misterioso ovo junto a outro de indez.

Gravura de pano de prato sem identificação de autoria.
Meu pai olhou direitinho o ninho galináceo, futucou ali, futucou acolá, empurrou páginas de jornais velhos para um canto, entortou a boca para um lado, entortou para o outro, franziu a testa, mirou o firmamento de azul intenso com olhos semicerrados, como a buscar inspiração divina, meneou a cabeça de forma suave e tentou explicar o que — supostamente — teria acontecido:

— Quando a galinha bota o ovo, Seu Antão, ele sai quente e molhado e encostou no jornal, e aí a tinta do jornal passou pro ovo. Eu acho que foi isso. Num entendo muito bem esse negócio de milagre, não, mas eu acho que foi isso que aconteceu. E foi por isso que apareceu no ovo “roma è sueD” em vez de “Deus é amor”, como deve tá
 no jornal. O senhor entendeu, Seu Antão?

Fotomontagem: Novais Neto. 2021.
Seu Antão, pelo visto, pela cara que fez, não se convenceu com as explicações dadas pelo desvendador de mistérios ovículos. Botou novamente — e com muito cuidado — o amuleto na caixinha, tirou uma embira da algibeira, amarrou novamente o pacote e o guardou. Agradeceu, formal e friamente, a meu pai. E nós, sem mais o que fazer, exalamos no mundo sem dá um pio. E ainda a crer em coisas do outro mundo.

Depois de tanto tempo, já que, naquela época, eu beirava doze, treze anos de idade, algumas coisas aconteceram: os bate-paus Chico e Péto viajaram para outra possível biodimensão. Seu Antão, que já era bem velhinho, corpo curvado, certamente não mais está entre os vivos.

E ovo? Do ovo nunca mais ouvi falar. E fim do mundo? O fim do mundo, este nosso mundão velho sem porteira, com se diz por aquelas bandas, que se cria não passar do ano 2000, já passou e muito. E não acabou! Também não se concretizou o assustador (e quase inevitável) Bug do Milênio, pesadelo dos cibernéticos, que ocorreria na meia-noite de 1999 para 2000, quando os computadores de todo o Planeta entrariam em pane. Nada disso aconteceu! Felizmente!

Referência:

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Edição do autor, 2009. 164p., p. 161. (conto revisto).

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O mais improvável dos encontros

Naquela noite, retornei mais cedo para casa. Era o dia 24 de junho de 2002, véspera do jogo das seleções do Brasil e da Inglaterra pelas quartas-de-final da XVII Copa do Mundo, sediada na Coreia do Sul e no Japão, que começaria às três e meia da madrugada do dia seguinte.

Estava em animado forró em São Félix do Coribe, nossa cidade coirmã, do outro lado do Rio Corrente. Lá, sorvi alguns copos de quentão para esquentar a friorenta noite. Nada em exagero. O pensamento, no entanto, não saía do jogo. É que havia prometido a meu pai assistir à partida com ele, embora soubesse que dificilmente cumpriria meu compromisso, pois nestas ocasiões sempre fico muito ansioso.

Já em casa, tentei, vãmente, conciliar o sono. Até que cochilava um pouco, tinha sonhos — para não dizer pesadelos — e acordava com o futebol no pensamento. Finalmente, começou o jogo. Saí de mansinho do meu quarto e fui para a rua sem que ele percebesse minha escapulida.

Subi a Rua Teixeira de Freitas completamente deserta. Imagina que esta rua em dias normais, às três da madruga, já é bastante parada, naquele momento, então, todo mundo grudado na frente do televisor, não se via uma única alma vivente a zanzar. Tudo era silêncio e vazio.

E lá vou eu rua acima, pelo meio. Nas casas, pelas frestas, viam-se as luzes acesas e algum burburinho. De repente, ouvi a palavra gol. Era gol da Inglaterra. Um ou dois foguetes espocaram, sinal da presença algum gringo inglês ou argentino escondido naquelas bandas ou mesmo brasileiro metido a anglicano.

Continuei minha caminhada, agora, mais nervoso ainda. Àquela hora, corria um ventinho frio bem típico das noites juninas. Finalmente, cheguei a meu destino: a casa de Manelim de Seu Dió do Pote, irmão de Mazim Fotógrafo, na Rua José Leopoldo Lima. 
Bati com suavidade na porta, porta de vidro que me permitiu ver a televisão ligada. De lá de dentro, uma voz que parecia amedrontada perguntou:

— Quem é?

— Ladrão — retruquei — e escutei a confabulância: “Tio Manoel, num vou abrir, não. Tem um ladrão lá fora”. “Que ladrão que nada, menino mofino, assombrado. Ladrão que é ladrão vai dizer que é ladrão? Acende a luz da área pra ver quem é”.

— Eu já tava imaginando que só podia ser você, Nó, com as suas latumias. Você não me pega mais, não. Vamos, entra, vamos ver o jogo, que tá é bom — convidou-me gentilmente Manelim.

O jogo já encaminhava para o final do primeiro tempo, quando Ronaldinho Gaúcho deu uma bonita arrancada, passou a bola a Rivaldo, que marcou o gol de empate. Aí sim, fiquei mais tranquilo.

No intervalo, meu anfitrião convidou-me a fazer um concentrado chá de erva-cidreira misturado com camomila para acalmar os nervos. E assim foi feito, mas o resultado desejado não veio. Fiquei foi mais nervoso ainda, a infusão parece que teve efeito reverso: o coração disparou, deu-me uma sudorese  danada, ou suadeira, para não fugir da minha origem. Ainda assim, tentei suportar quanto pude.

Começa o segundo tempo e, logo no início, ao cobrar falta despretensiosa (ao que pareceu), Ronaldinho Gaúcho, apelidado de Bruxo ou Mago, fez valer sua alcunha ao marcar o segundo (e improvável) gol do Brasil. Pronto! Não havia quem me prendesse na frente daquela televisão. E caí fora, não suportava mais ver o jogo de tanta tensão. Fiz o caminho inverso. Desci a Teixeira de Freitas e a rua continuava dormindo, só um açougue já estava com as portas abertas. Parei, dei uma espiadela e segui minha tortuosa senda, doido para o jogo acabar, melhor dizendo, meu sofrimento.

Cobrança de falta de Ronaldinho que originou o gol. Foto: Reprodução / Internet.

Comemoração de Ronaldinho e do banco de reservas. Foto: Reprodução / Internet.
Já no finalzinho da rua, aliás, no começo, bem embaixo, próximo ao Jardim Fifa, vi um vulto, magrelo e alto, vindo em minha direção. Confesso que não tive o menor medo, afinal, não havia motivo para tanto, lá é bem tranquilo. Reconhecemo-nos. Era Fredão de Zé Dentista, que foi logo indagando:

— Que foi, moss? Que é que cê tá fazendo esta hora na rua? Tá perdido que nem eu?

— Que perdido, que nada, Fredão, tô é com medo de ver o jogo.

— Então são dois. Só que dei um azar disgramado, saí tão avexado de casa pra vim pro Corrente Verde me esconder, que acabei esquecendo a peste chave em cima da geladeira. Agora, vou ficar bestando pelas ruas até acabar o diacho desse jogo, porque lá eu num volto mais, não, nem peado.

— Tá bom! Então vamos “medir rua” por aí. Vamos subir a Lavandeira, seguir pela estrada do Derba até o Riacho Seco pra ver se o tempo passa mais depressa — sugeri ao meu parceiro de infortúnio.

E foi o que fizemos. Andamos, andamos, contemplamos os matos todos secos, o que é bem comum no mês de junho, escorraçamos alguns vira-latas que vinham nos morder e seguimos. De vez em quando, ao longe, ouvíamos um “uuuuu”, sinal de algum lance mais dramático do jogo.

Conversamos sobre poesia, sobre a ONG Corrente Verde, Ecologia, futebol, que não havia jeito de sair das nossas cabeças, quando finalmente ouvimos uma explosão de alegria, espocar de foguetes: o Brasil ganhou, só poderia ser! Passos — agora — bem apressados. Queríamos ouvir os comentários, ver os lances e respirar aliviados. “Passamos por mais um adversário”, pensamos nós, cada qual com seus botões, evidentemente.

No caminho de volta, ainda na estrada do Derba, vimos Dema Bodeiro e filhos, eufóricos, a comemorar o feito canarinho. Os irmãos Babão e Finho de Cilerino, felizes da vida, iniciavam sua corrida matinal, e tantas outras pessoas com riso largo estampado no rosto, penduradas nas janelas de suas casas ou nas calçadas, no Bairro da Sambaíba, a festejarem a vitória brasileira, naquela frigidíssima alvorada junina.

Fredão de Zé Dentista tomou o rumo da Rua dos Doidos, onde mora, e eu fui para a casa de meus pais, na Rua Teixeira de Freitas, tomar um café quentinho passado em coador de pano para espantar o frio daquele gelado e feliz alvorecer. E ver os gols da partida, claro. Conversar com meu pai, Tião 
Sapateiro, aficionado por futebol, principalmente em Copa do Mundo, e admirador mor de Ronaldinho Gaúcho.

Quanto ao mim e Fredão, soma-se à coincidência de padecermos de idêntico “mal”: não aguentar assistir a jogos decisivos do Brasil, outro “mal”, bem mais ameno, que nos aflige, também nos une, porque é o que nos põe do mesmo lado das paixões clubísticas: sermos, 
desde os anos 1970, torcedores do Fluminense, o Tricolor das Laranjeiras. Somos, portanto, “pós-de-arroz”!

Referências:

COBRANÇA de falta (foto). Disponível em: <https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLiCXpoU5tdxY0TaowtbezTvKfNBrI-u5zTJngjG7D8wolDGZeJ-I1WPFJVtbAY-W8S1oJNb9Nqot3wGJodOWVovRzYIqTzBSrjZSgxnT06A8V7u4-AUWqJASuS9xjAsbykw7E3B0_EvM/s1600/r10+01.jpg>. Acesso em: 13 ago. 2021.

COMEMORAÇÃO do gol (foto). Disponível em: <https://i.ytimg.com/vi/7hcFmS1KvRg/mqdefault.jpg>. Acesso em: 13 ago. 2021.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Musa de uma manhã

O dia amanheceu chuvoso. O Sol sequer apareceu. Aliás, proibiram-no de lançar seus lindos raios sobre aquela manhã friorenta do mês de Maria, de algum ano da década de 1980, não sei precisar exatamente. O céu nubiloso, um vento gelado e uma chuvinha miúda prenunciavam muitos atropelos da natureza.

Levantei cedo como habitualmente faço. Dei um toque no visual e rumei ao trabalho. Conhecendo um pouco esta Salvador, cidade-verão, inegavelmente, optei por ir de ônibus. É menos desgastante, principalmente, quando se tem pela frente alguns inevitáveis engarrafamentos.

Coletivo cheio. Lá fora, uma chuva fina continuava a castigar a manhã do mês mariano. Muita gente molhada entrava no ônibus e um calor insuportável deixava em cada rosto marcas de suor, de abafamento, agitação, de desconforto.

Estava em pé, porém bem acomodado. Uma estudante pediu-me para segurar um pequeno embrulho que levava, enquanto ela procurava algo em sua bolsa. Reparei em muitos semblantes, diante do previsto engarrafamento na Ladeira do Garcia, sinais de cansaço, angústia, sobretudo ansiedade. Uns mostravam o retrato de noite mal dormida. Outros, ainda sonolentos, ensimesmados. O que em verdade havia de comum em muitas fisionomias era a quase certeza de chegar atrasado aos respectivos compromissos. Estudantes, trabalhadores, todos deixavam transparecer apreensão.

À minha frente, uma escolar folheava, desligada do mundo ao seu redor, uma dessas revistinhas de fotonovelas. Sem necessariamente prestar atenção ao que lia, pude ver, num olhar de soslaio, os títulos dos assuntos que a absorviam tanto: Escolha seu par perfeito e Significado dos sonhos. Confesso que me detive um pouco no primeiro assunto. Pus-me a meditar sobre a temática e... Bem que gostaria – também – de encontrar alguém para nos tornarmos um par ideal, perfeito!

Quanto ao Significado dos sonhos, este me fez lembrar do que houvera sonhado naquela noite. Certamente, ali não diria o que vem a ser sonhar com dejetos humanos. A crendice popular não obstante garante que é sinalização de bonança, de grana extra. É... Bem que não seria nada mal!

Fiquei tão entretido em meus devaneios, nos meus sonho, nem percebendo que o ônibus estava bem mais tranquilo, vazio até. Passou o congestionamento e já era hora de descer na Praça Conde dos Arcos, em frente ao Elevador Lacerda e ao Mercado Modelo, no Bairro do Comércio.

Antes de ir ao Baneb, onde trabalhava, passei no self-service do Supermercado Paes Mendonça, do referido logradouro, para o habitual breakfast, o nosso quebra-jejum. Ainda na fila, com a bandeja nas mãos, percebi que uma belíssima mulher olhava-me insistentemente. Fiquei meio desconfiado, senão desajeitado, fato que não me impediu de olhá-la fixamente, por outro lado.

Foto: Reprodução / Internet (vide site em Referências).
Sentei-me a umas três fileiras de mesa a sua frente e então pude desfrutar calmamente o esplendor de sua beleza. Uma obra de arte. Sorriso gostoso, olhos grandes, claros, lábios torneados, da cor do carmim, cabelos aloirados, meio ondulados. Belíssima mulher. Sem exagero: estonteante!

Ela continuou, ainda assim, a olhar-me com alguma insistência. Tive vontade de aproximar-me dela, mas não o fiz, nem faria. Estava acompanhada de um senhor de meia idade que poderia ser seu pai. Também, nada impediria, pelo menos para um simples observador como eu, que aquele cavalheiro pudesse ser seu namorado, marido... Ou coisa do gênero.

Reservei-me ao direito (e ao prazer) de contemplá-la. Fiz alguns gestos tímidos e anotei meu telefone num pedaço de guardanapo, fazendo-a perceber que era para pegá-lo, quando passasse por minha mesa. Ao que notei, minha musa entendeu e, afirmativamente, concordou com um discreto meneio de cabeça. Aguardei, então, ansioso, o desenrolar daquele romanesco episódio.

Ao final café, ela levantou-se calmamente e deixou que seu acompanhante adiantasse um pouco, de propósito. Porém, no exato instante em que passava por mim, quando estendeu a mão para pegar o talismã – meu pedaço de guardanapo – num átimo de segundo, aquele senhor olhou para trás e... quanta infelicidade! Ela recolheu rapidamente a mão, sem haver completado seu intento.

Foi um verdadeiro desastre para mim. Correu-me um frio intenso pelo corpo. Olhamo-nos, trocamos acenos e ela se foi. Vacilante, atordoado, incrédulo, permaneci naquela mesa o tempo suficiente para minha “dama de vermelho” eterizar-se na multidão. Desapareceu, sem deixar qualquer sinal pelas labirintosas ruas daquele bairro.

Ainda hoje, além da sua imagem cada vez mais nítida na memória e o registro nesta crônica, como recordação fatídica, guardo o pedaço de papel com meu telefone (que “meus guardados” se encarregaram de escondê-lo) e, mais que isso, a imorredoura vontade de que o tempo, mesmo que não contrarie sua marcha ao Infinito, conceda-me bis àquela lírica manhã, com outro final, sem dúvida.

Voltei lá tantas outras ocasiões. E, na profusão de tantos e tantos rostos conhecidos e desconhecidos, o dela jamais surgiu. E não surgirá, vez que me pareceu turista ou, pior ainda: uma miragem! Portanto, ter de conviver com a hipótese de não mais ver minha diva, chega a ser dramático. Neste caso, melhor seria nem tê-la “conhecido”, porque evitaria a instalação de um onírico mundo a delongar indefinidamente com a realidade, sem a musa daquela tão longínqua manhã.

Para muitos, certo que esta crônica soará como uma atitude puramente masoquista. Entretanto, para este que a escreveu, é um excitante e, ao mesmo tempo, um sedativo exercício de sinceridade e coragem. Afinal, quem de nós não passou (ou passará) por semelhante situação? Quem estará livre? Quem, certamente, tão leigo quanto a mim em futurologia, não poderá admitir a hipótese de rever a musa de alguma manhã perdida no tempo? Ou criá-la, talvez?

Assim, aquela que para os mais românticos (talvez piegas) poderia ser chamada “alma gêmea” e mudar o rumo da (minha) história ficará, doravante, como lembrança de uma manhã dentre tantas outras manhãs que hão de vir, por certo. Sem ela... Infelizmente!

Referências:

MONTE JÚNIOR, Walter Cândido do. 30 anos e uma memória sobre as lutas de classe: a mobilização dos trabalhadores no comércio da Cidade do Salvador, 1987. Disponível em: <https://www.comerciariossalvador.com.br/30-anos-e-uma-memoria-sobre-as-lutas-de-classe-a-mobilizacao-dos-trabalhadores-no-comercio-da-cidade-do-salvador-1987/>. Acesso em: 31 jul. 2021.

sábado, 12 de junho de 2021

A felicidade segundo João Diamantino

Minha vida laboral começou bem cedo. Na sapataria do meu pai, ainda criança, costumava fazer, juntamente com os irmãos Jairo Rodrigues e James Dael, sandálias de boneca que eram vendidas às meninas na calçada da casa dos meus pais por nós mesmos. O pagamento nem sempre se restringia a moeda propriamente dita, mas até carteiras de cigarros vazias, consideradas “dinheiro”, valiosas para nós meninos, principalmente as mais raras como Consul, Astoria, Albany, Malboro, Camel etc.

Depois, fui me aperfeiçoando na profissão paterna e passei a fazer sandálias, alpercatas com solado de pneu e tamancos, que vendia inclusive a colegas de escola. Quanto a esses produtos, eu os deixava para minha mãe entregar, porque saía muito fiado e eu não sabia dizer “não”, como também não sabia cobrar depois, portanto, essa tarefa quase sempre ficava por conta dela.

Após os 18 anos, por influência da minha tia Isaura Almeida, irmã da minha mãe, e pelo bom desempenho na escola (sei lá!), fui trabalhar, em 1977, no Funrural, isto é, Representação Local do Funrural, cujo representante era Milton de Souza Borba, casado com minha ex-professora ginasiana de Matemática, Zenilda de Souza Borba, que efetivamente ficava à frente dos serviços do escritório.

Novais Neto, Milton Borba, Regina Lúcia e Trabalhador Rural. Acervo: Novais Neto. 1977
Trabalhar no Funrural foi um verdadeiro desafio para mim, pois lá já laborava o experiente José Ferreira da Cruz, Zé de Paula, com diploma do antigo Curso Normal (Magistério), professor de Datilografia e servidor público municipal na Câmara de Vereadores da cidade, que iria se desligar. Além dele, a também professora Maria Magalhães (Dô), filha de Tinhô Queiroz, fazia parte da equipe.

Meu trabalho, inicialmente, foi entrevistar os pretendentes à aposentadoria ou pensão, seguindo um questionário preestabelecido. Era muito bom (e divertido) porque eu me deliciava com aquele contato com o pessoal da roça, pois já tinha esse hábito quando trabalhava na tenda de sapateiro do meu pai, que confeccionava principalmente botinas, além de “precata-salga-bunda” para pessoas da zona rural.

Com também gostava de escrever e desempenhava bem as tarefas na máquina de datilografia, cabia a mim redigir documentos, cartas, ofícios, sempre orientado por Seu Milton, que conhecia muito bem a linguagem própria, e acabei aprendendo muito e exercitando tão salutar atividade: escrever.

Seu Milton nos falava muito de seus antigos colegas de escola, dentre eles, o conterrâneo, sociólogo e cosmopolita Clodomir Santos de Morais, um dos expoentes da cultura santa-mariense. Por outro lado, de tanto repetir um ditado improvisado em sala de aula pelo mestre de ambos, João Diamantino de Oliveira, por título “A felicidade”, do qual tão somente se lembrava de dois parágrafos do mesmo, conforme transcreveu para mim.

Manuscrito de Milton Borba, 1978. Acervo: Novais Neto e João Diamantino: Acervo: Flamarion Costa.
Essa lembrança, por parte de Milton Borba, acontecia muitos anos depois, já que, segundo ele, o referido ditado é do ano de 1950, guardado na memória. O autor de tão belo improviso, João Diamantino nasceu em Minas, mas adotou Correntina como sua terra natal, por lá ficou e construiu bela e indelével história.

O famoso “baianeiro” foi professor, orador, poeta e rábula ou provisionado, isto é, advogado sem formação acadêmica em Direito, que obtinha autorização do Poder Judiciário ou entidade de classe para exercício da profissão. Em nossa Santa Maria, conheci alguns desses imprescindíveis profissionais de admiráveis conhecimentos jurídicos, dentre eles, Manoel Cruz, Wilson Afonso e Domício Gramacho.

Quanto especificamente ao lente João Diamantino, ele é sempre lembrado por minha mãe, Jandira Almeida, 91 anos, que com ele conviveu quando ela trabalhou na Tesouraria, da Prefeitura de Santana, sua terra natal, entre os anos de 1947 a 1950, época do mandato do então prefeito João Alkmim.

Relativamente ao ditado improvisado em sala de aula por João Diamantino, por achá-lo tão maravilhoso e expressivo, tomei a ousadia de complementá-lo tomando por base, evidentemente, as palavras contidas no parágrafo inicial, incompleto, como já foi dito. Eis, portanto, “A felicidade” segundo Seu João:

“Verdadeira ilusão a de andar-se à procura da felicidade, porque a ninguém caberá o direito de encontrá-la inteira e completa como a desejamos.

Sustentada pelas alternativas de prazer e sofrimento, pelos momentos odientos e amorosos” [...] (1), a felicidade faz-se verdadeira obsessão, mas se sente inviolável e inatingível como a gênese dos tempos.

Ainda assim, movidos por desejos incontidos, mesmo sabendo da impossibilidade de tê-la prisioneira e privativa, nós, homens e mulheres, incansavelmente a buscamos.

Por isso mesmo, sabiamente, desabafou alguém num momento de sofreguidão: “Aí, felicidade, quanta besteira se comete porque tu sabes fazer desejada”.

Observação:

(1). Até esse ponto, as palavras são de João Diamantino. A partir daí, são palavras minhas.

Referências:

OLIVEIRA, João Diamantino de. Bichão de sorte. In: COSTA, Flamarion et al. Poetas de Correntina e Samavi. V. 2. Brasília, DF: Edição do autor, 2021. 205 p. p. 79. (livro não publicado).


FILARDI, Aldair. Santana: ontem, hoje, sempre...: uma viagem no tempo e na saudade. Salvador, BA: Edição da autora, [20--]. 114 p. p. 14.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Saga da vacina

Primeira dose: O senhor é idoso?


Primeiro de abril, tradicionalmente, “dia da mentira”, foi para mim “dia da verdade”, pois tomei a primeira dose da vacina contra nefasto vírus que a (quase) todos amedronta e que já ceifou precocemente muitas preciosas vidas.

Não seria meu dia de vacinação caso levasse em conta a idade, 63 anos, contudo, por enquadrar-me em grupo prioritário definido pela Secretaria Municipal de Saúde de Salvador: policiais militares e civis, bombeiros, guardas municipais, agentes de trânsito, dentre outros, acima de 50 anos, na ativa, poderia ser vacinado.

Fui de carro com minha filha Lara Novais, biomédica, para o Estádio Metropolitano Governador Roberto Santos, mais conhecido por Estádio de Pituaçu, atrás da tão desejada imunização. Ao apresentar-me a uma profissional que fazia a triagem, ela nos cumprimentou e foi clara e objetiva na pergunta:

— O senhor é idoso?

— Sim, senhora — respondi cordialmente.

A atendente então se virou para um cidadão que estava em uma mesa um pouco afastada e lhe disse: “ele é idoso”. Não ouvi a resposta dele, porém ela assim me disse:

— O senhor é idoso, não é hoje, não — e simplesmente sentou-se numa mesa, não nos dando mais atenção. Entretanto, insisti:

— Respondi que sou idoso, porque foi esta sua pergunta, mas sou profissional do grupo convocado — e ela retrucou:

— O senhor disse que é idoso, não disse que é profissional — mesmo assim me pediu contracheque e carteirinha funcional, conferiu e me encaminhou para outra profissional que iria aplicar a vacina. Antes de sair, no entanto, deixei-lhe gentilmente este ensinamento popular: “Se quiser ouvir a resposta certa, faça a pergunta correta”.

Quanto à atendente responsável pela aplicação da vacina, de prenome Consuelo, foi extremamente gentil, atenciosa, graciosa, sobretudo profissional. Fez tudo “no padrão”, como costumamos dizer.



Novais Neto sendo vacinado. Foto: Lara Novais. 2021



Finalmente, “quase” não seria vacinado pelo simples fato de ser idoso! E num 1º de abril. Quem iria acreditar?

Segunda dose: Sou esquecido.


Bem mais tranquilo, por haver tomado a primeira dose da tão pretendida vacina, teria que esperar 28 dias para receber a dose de reforço, que deveria ser agendada, com hora marcada, por determinação da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, no site do Órgão.

A agenda para marcação, segundo a Secretaria, abriria toda sexta-feira. No dia certo, tentei marcar para 29/4/2021, como está no meu cartão de vacinação, mas não havia vaga disponível. Agendei, então, para 27, já que também não foi possível para o dia 28, sem qualquer rejeição por parte daquela página digital.

No dia agendado, fui ao posto de vacinação. Entretanto, quando a atendente fez a conferência, informou-me que eu não poderia antecipar o dia, portanto, não poderia receber a segunda dose. Resignado, voltei para casa e remarquei para o dia 30 do mesmo mês, no horário das 15 às 16 horas.

Para evitar qualquer imprevisto, cheguei uma hora antes e fui atendido por um senhor que fazia a triagem. Ele apontou para um guichê onde deveria ser atendido. Quando me pediram os documentos, constatei que não havia levado o cartão de vacinação e fui informado de que não poderia ser imunizado.

Decepcionado, cabisbaixo, fui saindo, quando o mesmo senhor que fez o pré-atendimento perguntou o que havia acontecido. Contei-lhe o ocorrido e ele foi muito sensato, prestativo e contundente:

— A falta do cartão não é motivo para deixar de ser vacinado, não. Já pensou? — e completou:

— O senhor disse que esqueceu. E se tivesse mentido, dizendo que perdeu ou foi roubado, iria ficar sem a vacina também? Eu vou procurar a enfermeira — e tomou-me os documentos.

Minutos depois, voltou e pediu-me para aguardar que seria atendido. Uma funcionária, que não a enfermeira, atendeu-me e apenas reforçou que eu teria que apresentar o cartão, obrigatoriamente, do contrário, não poderia tomar a segunda dose.

Saí da sala, nesse jogo de empurra, e fui falar com meu empático anjo da guarda, de carne e osso, que ficou indignado com o tratamento a mim dispensado, e argumentou como a confessar:

— Já vi tanta gente tomar vacina aqui sem o cartão, porque perdeu, porque esqueceu... Vou lá, de novo — foi e voltou, garantindo que a enfermeira, chefe do posto, iria ela mesma me atender.

Sem muita demora, agora, fui atendido pela referida servidora municipal, que me deu um esculacho, um “sabão”, dizendo que não poderia me atender, que deveria ter trazido o cartão, coisa e tal. Não contra-argumentei, fiquei apenas a ouvi-la, afinal, o errado na história era eu!

Houve um momento, quando ela me entregou os documentos dizendo que não poderia me atender sem o cartão, que tentei uma solução, busquei uma alternativa e expus para ela:

— Como moro perto e ainda não está no meu horário agendado, falta mais ou menos uma hora, vou tomar um táxi e pegar o cartão em casa, mas gostaria de ter a garantia da senhora de que, retornando no meu horário de atendimento, serei vacinado.

A servidora refletiu bem, buscou confirmar no site da Secretaria se eu havia tomado a primeira dose mesmo, o que de fato aconteceu, tirou foto do lote do imunizante em mim aplicado, da tela do computador, enviou para uma colega e pediu-me para aguardar em lugar apropriado, fora da sala.

Momentos depois, tudo confirmado conforme eu havia dito, novo cartão foi confeccionado, novo “sabão” tive que ouvir, mil recomendações quanto à guarda do precioso documento, e eu apenas a acenar concordantemente com a cabeça, afinal, quem mandou esquecer?

Por fim, tomei a segunda dose do tão desejado imunizante, tudo certinho, como manda o figurino, restando-me agradecer a todos que me atenderam, principalmente a meu primeiro atendente que se compadeceu de mim e confessou-me, sorridente: “eu também sou é esquecido, do jeitim do senhor”.

Novais Neto. Foto: Selfie. 2021
Resumo da minha saga vacinatória: na primeira dose, eu tremi, mas fui imunizado; na segunda, quem tremeu foi a foto, tirada por mim, mas fui vacinado, e assim, um final feliz concretizou-se.


sexta-feira, 23 de abril de 2021

O palavreado de Seu Luiz

Toda cidadezinha interiorana desfruta de uma figura folclórica. Na minha terra, há inúmeras que mantêm vivos o uso, os causos e a velha máxima popular que assevera: “O povo não inventa, aumenta”.

Lá em Santa Maria, não se foge à regra. Aliás, foge sim! Além de aumentar, existem pessoas como Salvador do Mercado que criam histórias, piadas, jargões enriquecedores do folclore santa-mariense.

Havia, também, pessoas como Seu Luiz Serrano, homem simples, mestre de obra, que se preocupava com a boa fala. Não dispensava um termo rebuscado quase sempre empregado em momento oportuno e corretamente.

Conta-se que, numa ocasião, Seu Luiz foi ao Banco do Brasil repetir uma transação bem corriqueira para ele: solicitar a emissão de uma Ordem de Pagamento.

Todo cerimonioso, entrou na agência e se deteve em frente à bateria de caixas. Um funcionário, ao vê-lo, provocou-o, porque, já o conhecendo, gostaria de ouvir algo novo da nossa língua portuguesa.

— E aí, Seu Luiz, o senhor vai fazer a Ordem de Pagamento?

— Não, meu filho. Vou fazer uma transferência de numerário.

Alguém, noutra oportunidade, aproximou-se dele e lhe deu uma notícia meio triste:

— Seu Luiz, o irmão do senhor está bêbado, caído lá na rodagem que vai pra Santana.

— Obrigado, meu filho. Ele é que sabe se aguenta o peso da Goodyear — evidentemente se referindo a pneus da famosa marca utilizados por automóveis que poderiam atropelá-lo na pista, ali caído.

Era sempre assim: aquele amável senhor dificilmente adentrava o coloquialismo. As respostas fluíam sem qualquer deslize. Seu Luiz nunca vacilava nas respostas, como esta que deu ao prefeito, quando, bem cedinho, chegou à casa do mesmo dando-lhe notícias de uma das filhas adoentada.

— Senhor prefeito, vim aqui pedir-lhe uma ajuda financeira para comprar medicamento para minha filha 
— e mostrando o braço da menina, apontou para uma região bastante avermelhada e inflamada, fato que sensibilizou o prefeito:

— O que foi isso, Seu Luiz? Foi mordida de algum bicho? Você sabe que bicho foi esse?

— Foi, sim, senhor. Foi um aracnídeo que lhe picou a epiderme, causando edema e muita dor.

Ainda com o prefeito, aconteceu algo digno de registro. Por ocasião de uma mudança de residência, Seu Luiz foi chamado pelo governante para orientar carregadores na retirada dos móveis.

Durante o desmonte de um deles, Seu Luiz viu dois ajudantes desmontarem bruscamente uma bonita estante, arrastando-a e forçando-a a ponto de rachar uma das tábuas. Aquele pacato senhor perdeu a paciência ao presenciar tamanha estupidez, e caprichou no vernáculo:

— Seus apedeutas, energúmenos. Será que não percebem que são módulos de sobrepor. Basta levantar cada um com sutileza. E pronto, está resolvido!

Contam também que o mesmo saiu-se com uma resposta digna dos bons trocadilhistas, quando um senhor chamado Penha jogou-se de um prédio ao descobrir que estava sendo traído pela esposa.

— Seu Luiz, pel’amor de Deus, o que foi isso?

— Um homem que se despenha (diz Penha) por uma mulher que disputa (diz puta) — aqui, certamente, a repetir um grande poeta brasileiro, o curitibano Emílio de Menezes, frase a ele atribuída.

Este causo era também contado pelo sempre sorridente Chiquinho da Almasa (Algodoeira Santa Maria S/A, da qual era contador). Chiquinho, ao casar com Milu Assunção, tornou-se Chiquinho de Milu. Elegeu-se prefeito e governou nossa cidade entre os anos de 1983 e 1987. Ele foi meu professor de Práticas Contábeis no Centro Educacional Santamariense, quando ginasiano. Chiquinho partiu prematuramente desta vida.

Ao contrário de Seu Luiz, Chiquinho da Almasa era um bom piadista. Certa feita, alguém noticiou a ele com entusiamo: “Chiquinho, vou me casar”, ao que, de supetão, questionou a sorrir: “contra quem?”.

Seu Luiz é uma “figuuuuura”, diria um poeta conhecido meu. E por falar em poeta, vejam a requintada resposta que ele teria dado àquele senhor que o interrogou sobre um animal que havia sido atropelado.

Cão atropelado. Foto: Reprodução / Vide referências.
— O que foi isso, Seu Luiz? Tadim do bichim! Tão maguim!

— Foi um veículo que, com suas quatro rodas borrachinosas, passou sobre o crânio deste canino, deixando-o inerte nesta praça escaldante — episódio que também ouvi narrado por Chiquinho da Almasa, cujo personagem não era Seu Luiz.

Levando, por fim, o palavreado de Seu Luiz para um Português entendível, sem tanto rebusco, ele apenas quis dizer “que um carro havia passado na cabeça de um cachorro”. Muito simples!

Referências:

ANIMAL atropelado deve ser socorrido por motorista. Disponível em: <https://cdn.autopapo.com.br/box/uploads/2019/05/20101932/animal-atropleado-deve-ser-socorrido-por-motorista.jpg>. Acesso em: 23 abr. 2021.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Eta celularzinho fofoqueiro e mentiroso!

Dia desses, estava eu no ponto de ônibus do Condomínio Solar Boa Vista, no Engenho Velho de Brotas, na capital baiana, juntamente com uma conhecida, que não vou dizer o nome, evidentemente, à espera da tão preciosa e demorada condução. Ela, por certo, para minimizar a chateação da espera, falava despreocupadamente ao celular. E como falava!

Andava para um lado, para o outro, cumprimentava alguém que chegava e dava um verdadeiro show de acrobacia com aquele aparelhinho: levava ao ouvido, levava à boca, era aquele lá e cá que chamava atenção e ela “nem aí pra nada”. Continuava “na dela”, com o “desconfiômetro” desligado. Ora falava alto, ora bem baixinho, como se segredasse. E o infindo diálogo prosseguia animado.
 
Foto: Reprodução / Internet. Vide nota no final.
Eis que chega o tão esperado buzu. Umas três pessoas correram para entrar naquele veículo, inclusive eu e ela, por coincidência. Dei-lhe passagem. Ela subiu primeiro e, logo depois, fiz o mesmo. Que gentileza errada! Minha conhecida, com o celular ao ouvido, apoiado no ombro, tenta pegar dentro de uma gigantesca bolsa que transportava, certamente, uma bolsa menor. E achou. Agora, era procurar dentro dessa bolsinha, o lugar onde estavam as moedas. E encontrou também. Milagre!

Com a bolsinha na mão, retirou dela um porta-moedas, pegou o dinheiro de dentro, colocou na mesinha do cobrador e começou a contar as moedinhas. Quem estava depois de mim, logo começou a resmungar, e ela, falando ao celular, sorrindo, fingia que nada estivesse acontecendo. A pista, como é bem sinuosa naquele local, o ônibus jogava-nos ora para um lado, ora para outro, como se fôssemos charuto em boca de bêbado. Pacientemente esperei, afinal, haveria de compreender que ela “não teve tempo” de contar as “niquinhas” enquanto estava no ponto à espera do ônibus.

Situações como esta não são uma exceção, confirmam a regra. É o que mais se vê, como também vemos muito por aí, o que fez meu colega de trabalho, Nilsolândio. Outro dia, chegando ao batente, lá vinha Nilso (mais fácil de pronunciar) em minha direção, a falar. Quando estava bem próximo dele, perguntei o que era. Ele aponta o polegar para si, aparentando falar consigo mesmo. Nada entendi, pois nem os fios nem o fone de ouvido eu os havia percebido. Só vi um “maluco” a conversar sozinho como tantos e tantos outros que encontramos pelas ruas desta tresloucada metrópole a usar o bluetooth.

Como disse, não é só ele que assim se comporta, coisas piores acontecem quando alguém está conversando ao celular, desde contar a mais “simples mentirinha” a encenar, em teatro sem plateia, “telebrigas” infindas. Foi num cenário desses em que me vi inserto ao tomar um coletivo na Av. Paralela com destino a Estação da Lapa, aqui em Salvador.

Sentei-me, naquela ocasião, bem tranquilamente, ao lado de uma moça que lia um volumoso livro, talvez para “encurtar” a viagem ou mesmo pelo prazer da leitura. Ou pelos dois motivos. Nada tão incomum em situações similares.

A viagem seguia sem anormalidades, quando o celular dela tocou. A moça o atende e aí acabou a minha paz, a nossa paz, digo melhor: o silêncio dentro daquele coletivo. É que ela começou um daqueles bate-papos em voz alta, a expor a própria vida, sem um mínimo de pudor, que deixou a todos constrangidos e boquiabertos sem acreditar no que ouvíamos. Como não havia outro lugar vago para me mudar, fiquei ali mesmo, tentando desviar o pensamento e doído para chegar ao ponto da Arena Fonte Nova, que fica antes da Estação da Lapa, para descer.

Nesse ínterim, creio que o interlocutor lhe perguntou onde ela estava, ao que respondeu, enfática: “Já estou na Lapa, meu bem, aguarde, por favor!”. Tomei um susto e, em voz alta, pensei, digo, questionei: “Oxe, aqui não é a Avenida Bonocô?”. A moça olhou para mim, espantada, botou o dedo indicador na boca, a pedir-me “silêncio!”. Em seguida, tapou o microfone do celular e me alertou com a cara séria, até de desespero: “Cala a boca, misera, é meu namorado, ele vai me matar”. E fez isso em voz alta!

E agora? Minha vergonha só aumentou, deu-me vontade de descer no primeiro ponto que surgisse, de tanto desconforto. Entrei na confusão sem ser chamado. Mas, não. Segui em frente e fiquei pensando como esse aparelhinho tem estimulado a mentira, desde a mais infantil até a mais deslavada, como se inverdade fosse algo tão natural, sem a mínima consequência, uma banalidade ou uma simples brincadeira. Nada tão grave.

Vivemos novos tempos, é sabido (e sentido). Tempos tecnológicos. Tempos em que, para os adeptos de inocentes mentirinhas, o celular, ao meu ver, os incentivou um pouco mais. Inversão de valores? Não. Algo, no entanto, pareceu-me patente, a olhos vistos: o celular banalizou a mentira! E quem dela já gostava, já tinha afinidade, só saiu a ganhar. Ganhar incentivo. E muito!

Nota: Foto disponível em: <https://atcaminhante.files.wordpress.com/2018/06/onibus-celular.jpg>. Acesso em: 2 abr. 2021.

sexta-feira, 12 de março de 2021

A Praça do Réptil e outras praças

Santa Maria da Vitória, seus causos incomuns, jardins e praças de nomes estrambóticos e risíveis. Confiram.

Sempre que conto para amigos ou colegas de trabalho algum causo relacionado a Santa Maria da Vitória ou mesmo falo de alguma peculiaridade da cidade, a reação vem em forma de gracejo na exclamativa frase: Só podia ser em Santa Maria da Vitória ou Santa Maria do Triunfo”, diriam os apaixonados torcedores do Bahia, aliás, do Baêa, tão somente para não pronunciarem o nome do eterno (e necessário) rival, o Esporte Clube Vitória.

“Mas será o Benedito?!”. Será mesmo que estas coisas só acontecem na minha terra? Não! Não é verdade! Toda cidadezinha do interior tem suas figuras folclóricas, seus causos pitorescos, suas singularidades, enfim. Por outro lado, com toda franqueza, não estou totalmente convencido disso. Senão vejam o que por lá acontece.

A cidade já nasceu contrariando a lógica por capricho da topografia local: a Rua de Baixo fica na parte alta e a Rua de Cima, na parte baixa. Tudo isso por conta do sentido que corre o majestoso Rio Corrente, cortando a cidade, causando aparente contradição. De onde vem o rio, é Rua de Cima, e para onde vai, é Rua de Baixa, embora o relevo pareça mostrar o contrário. Por esta razão, lá se pode dizer, sem prejuízo à semântica: “subir para a Rua de Baixo ou descer para a Rua de Cima”.

Antigamente, dois tamarindeiros também já faziam essa diferença:
o atual tamarindeiro (o do barco), perto da ponte Adão Souza, que liga Santa Maria da Vitória a São Félix do Coribe, era chamado tamarindeiro de cima. Outro, também na beira do rio, que ficava no fundo da casa de Manoel Bodeiro, onde é hoje o Jardim Fifa, em frente à Associarte Santa Maria, era o tamarindeiro de baixo.

Tamarindeiro de Cima. Foto (esq.): Rosa Tunes / Tamarindeiro de Baixo. Foto (dir.): Autor desconhecido.
Quanto ao Jardim Fifa, construído no mandato do prefeito Péricles Laranjeira Braga (1966–1970), sempre me questionei o porquê desse apelido. Quem teria botado? No local dele, nos anos 1960, ficavam as residências de Pulu (Apolinário), Manoel Bodeiro e Josefina Borba, demolidas pela Prefeitura para construção da atual praça. No jardim, havia um busto do Desembargador Joaquim Laranjeira, transferido posteriormente para o Fórum da cidade.

Alto da Lavandeira com casas onde é hoje o Jardim Fifa. Foto (esq.): IBGE. Foto (dir.): Desconhecido.

Vistas antiga e atual do Jardim Fifa. Fotos: Acervo do autor.

















Vistas antiga e atual do Jardim Fifa. Fotos: Acervo do autor.







Vista atual da Alto da Lavandeira e Associarte. Fotos: Novais Neto.












Logo após a construção daquela praça, a turma futeboleira para lá se deslocava, à noite, a fim de bater papo e ouvir transmissão de jogos e resenhas esportivas feitas pelas rádios Globo, Bandeirantes, Inconfidência de Minas e a Sociedade da Bahia. Vitor da Costa Neto (irmão de Nini de Paulo Soares, conhecido por Neto), espirituoso e mestre em pôr apelido, começou a chamar o local de Jardim Fifa em alusão àquele organismo esportivo. E o apelido pegou, ficando conhecido até nossos dias.

Quanto a outro episódio que vale a pena narrar, quem nos conta é o conterrâneo Clodomir Santos de Morais, advogado, sociólogo e escritor, no seu livro Conto Verossímeis I. Conta Morais, que Santa Maria foi palco, no final do século antepassado, da separação de dois gêmeos, Pedro e Miguel, que nasceram unidos à altura dos quadris, feita por uma parteira e “cirurgiã” leiga, Sabina Parto Bom.

Depois de separados, Pedro perdeu parte das nádegas e passou a ser conhecido por Pedro Bunda. O segundo ficou com uma proeminência nos quadris, dando a impressão de que portava uma arma, daí adveio o codinome Miguel Revólver. Este último eu o conheci comprando botina, 
“precata salga-bunda” e bruzego” (borseguim) na sapataria do meu pai.

Além destas e de outras curiosidades, há na cidade um jardim, cujo nome — ao olhar das mentes mais imaginativas — vem da “semelhança” (formato triangular com plantas no centro) que originalmente trazia do órgão genital feminino, na forma chula ou popular, como dizem os dicionaristas, no modo diminutivo: Jardim Bucetinha, localizado na Praça Joaquim Queiroz, que já foi Largo Capitão Joaquim Queiroz.

Vistas do antigo Largo Cap. Joaquim Queiroz. Fotos: Acervo do autor.

Vistas do Jardim Bucetinha (debaixo e de cima). Fotos: Novais Neto.
O estapafúrdio apelido ficou tão popular que o logradouro passou a ser conhecido como Praça do Jardim Bucetinha, para reprovação dos mais pudicos, de quem nela mora e, logicamente, dos descendentes do homenageado. Hoje, estão a chamá-lo de Jardim de Tezinho, porque lá, Walter Galhardo (Tezinho Alfaiate) tem um pequeno bar. Ninguém, no entanto, se esquece que o apelido é outro. Tal praça foi pavimentada no primeiro mandato do prefeito Rolando Laranjeira Barbosa (1962–1965).

Outro jardim, bem mais popular e muito famoso, é conhecido por Jardim Jacaré, cujo nome o ilustre santa-mariense, ex-prefeito (1960–1961), dentista e professor, de saudosa memória, Dr. Leônidas Borba se recusava a assim chamá-lo. Quando se referia ao logradouro onde ele está localizado, dizia Praça do Réptil, nunca, Praça do Jacaré, para mostrar total desaprovação ao apelido dado ao logradouro, pois não poderia admitir, jamais, que um desconhecido jacaré houvesse “engolido” o nome de seu amigo, o ex-senador e ex-governador baiano, Luiz Viana Filho, que emprestou nome à praça.

Jardim Jacaré em construção (déc. 1960). Fotos: Shirley Athayde e Novais Neto (déc. 1980).

Antigo Jardim Jacaré (déc. 1980). Foto (esq.): Novais Neto; Foto (dir.): Hermes Novais. Acervo do autor.
Antigo Jardim Jacaré (déc. 1980). Fotos: Novais Neto. Acervo do autor.




Jardim Jacaré. Foto (esq.): Reprodução / Facebook / Rita de Cássia Oliveira; Foto (dir.): Rui Lisboa.







Jardim Jacaré atual. Foto (esq.): Hermes Novais; Foto (dir.): Novais Neto. Acervo do autor.
A Praça do Jardim Jacaré ou Praça do Réptil, como quer Dr. Leônidas, é bom registrar, foi presenteada com duas belas esculturas de “dinos”, em ferro, os Mallerossauros, feitas pelo multiartista Chico Mallero, além de jacarés e sapos a contemplarem sua fonte luminosa.

Tudo isso, no entanto, é fichinha, como diríamos ironicamente, se levarmos em conta que nossa Santa Maria inventou, agora, de considerar ao pé da letra a frase corrente “dobrar esquina”, quando se quer dizer que alguém contornou uma esquina de uma rua qualquer. E há uma explicação para isso.

Quase todo final de ano, Carneirão e Ito de Ponciano promoviam um Carnaval fora de época, algo como uma Micareta. A cidade já festeja, no tempo certo, seu tradicional Carnaval. Mas festa... Festa nunca é demais! É o que pensam muitos.

No entanto, para que a Micareta se realize, algo de extraordinário acontece na Rua Teixeira de Freitas, por onde passa imenso trio elétrico arrastando animada multidão. No início da citada rua, esquina com a Juraci Magalhães, onde ficava a Eletromóveis Janaína, de Nissão, normalmente, o enorme caminhão do trio não passaria, pois não haveria como fazer a curva.

Aí então o extraordinário, o irreal acontece: a calçada e a marquise da loja de Nissão têm que ser cortadas bem rentes à parede, para que o ingente monstro sonoro possa passar, “tirando fino”. Isso acontece quase todo ano, anos a fio. E por muito tempo, as marcas comprobatórias do improvável ficam lá, à mostra, para quem quiser conferir o inimaginável ou dele duvide.


Rua Juracy Magalhães (esq.) e Rua Teixeira de Freitas (dir.). Fotos: Novais Neto.
Onde está, portanto, o extraordinário? O anormal? O excepcional mesmo é lembrar que aquela história de dizer que o “cúmulo da força” é “dobrar uma esquina”, em Santa Maria da Vitória, “o cúmulo da força” é “dobrar a esquina de Nissão”, “dobrar a Eletromóveis Janaína”, para o bem dos foliões e o desespero de quem mora na mais conhecida rua santa-mariense e suas imediações, em razão do ensurdecedor barulho.

Além disso, e por fim, “dobrar uma esquina”, na minha terra — está definitivamente comprovado — não é mera figura de linguagem. Lá, em Santa Maria da Vitória, esquina se dobra na marra, à força, a marretadas, literalmente, para o trio elétrico passar e a festança acontecer. Viram só?!

Outras fotos: Reproduções / Google / Maps


Jardim Bucetinha. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/@-13.3934707,-44.196408,20z>.

Jardim Bucetinha. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/@-13.3934707,-44.196408,20z>.
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Agradecimentos: Registro meus agradecimentos a Antônio Washington, Jair Queiroz e Tião Pedreiro (falecido em 2019), por terem reavivado algumas lembranças minhas dos temos de menino.

Em tempo: Esta crônica já foi publicada no Recanto da Lestras com o título de “A Praça do Réptil e outros bichos”, em 21/12/2013. Hoje está sendo republicada aqui no blog, revista, ampliada e ilustrada. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4620223>. Acesso em: 17/4/2020.

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