sábado, 3 de outubro de 2020

Papos risíveis sobre a morte

Falar sobre a morte nem sempre é um bom papo, por isso mesmo muito fogem dele, outros buscam frases ou termos correlatos para suavizá-la. Confiram.



Dia desses, a conversar com a arte-educadora e poetisa Ana Helena Bomfim por ocasião da partida do meu pai, Tião Sapateiro, em junho deste ano de 2020, lembrei-me de um bate-papo que tive com ele, dentre vários, quando me perguntou sobre seus contemporâneos que moram na zona rural do município ou em outra cidade, se ainda estavam vivos:

Novais Neto e Tião Sapateiro. Foto: Glécia Almeida. 2019.
— Cadê Gesulino Cabeça de Fosco fii de Mané Barrão, será que ainda tá vivo lá em Goiânia? 

— Não. Viajou pra cidade dos pés juntos, ano passado — respondi a usar o palavreado que lhe era tão próprio.

Raramente meu pai usava termos como morte, morrer, dizia viagem, viajar ou apelava para eufemismos ou frases equivalentes, quando àquelas palavras tivesse que se referir.

Após minha resposta, ele fez uma pausa, mirou perdidamente o tempo com olhos esverdeados, miúdos e, meditativo, prosseguiu:

— E Pêdo Saia Véa, filho de Zidorim Qué Sê cum Filipa Qui Mama, será que já viajou também?

— Empacotou. Abotoou o paletó de madeira, já faz é um tempão. 

— E Antõi Correto, lá das C’raíba? Tem notícia dele? 
— e elogiou o amigo. — Ali vi um sujeito direito, homem de palavra tava ali. 

— Pegou o chapéu da viagem também. Já faz um bocado de ano.

Ele fez mais um hiato, um pouco mais demorado. Olhou a rua, para cima e para baixo, contemplou o céu vespertino, desnuvioso, de intenso azul, como se antevisse inevitável futuro a aproximar-se dele sem que nada pudesse fazer, uma vez que seus amigos certamente nonagenários como ele, já haviam voltado para a Casa do Pai. E finalizou o desconfortável assunto sem com isso deixar de zombar da morte com indisfarçável e invulgar bom humor:

— É... esse povo parece que não tem o que fazer, só fica morrendo à toa feito besta — e mudamos de conversa.

Pelo dito, a viajar em minhas elucubrações, foi ele por certo que não teve mais nada a fazer entre os pobres mortais do Planeta Terra, e rumou para a Eternidade, onde provavelmente terá assuntos menos indigestos e não aziagos.

Na minha conversa com Ana Helena, por seu turno, a poetisa me contou que, ao acompanhar o féretro de Zé de Júlia Fogão, do Reis Guarany, pelas ruas santa-marienses, ficou a prestar assunto em um papo que rolava, tristemente, entre duas senhoras, bem velhinhas, que faziam o mesmo trajeto:

— Ei, cumade, se não fosse a morte, hein, essa vida era um vidão, num era?

— Era mermo, cumade. Mas aonde é qui Deus ia botar esse tanto véi? Diga aí, hein! 

— É mermo, cumade. Tem qui morrer mermo. Deus tá certim da silva!

Em tempo:

1) Alguns prenomes utilizados neste conto são fictícios, portanto, possíveis semelhanças com nomes reais terá sido fortuita coincidência. Quanto aos sobrenomes (apelidos), estes sim, são verdadeiros e eu costumava ouvi-los em conversas com meu pai, e muitos deles, conhecer seus detentores.

2) Ofereço este modesto conto ao poeta, músico, compositor e jornalista Aloísio Brandão, da coirmã cidade de Santana (BA), residente em Brasília (DF), como retribuição à sensibilíssima, poética e instigante postagem em minha página do Facebook por ocasião da partida de Tião Sapateiro. Obrigado, poeta!

9 comentários:

  1. Oi meu amigo, aqui me deliciando em suas memórias com o S.Tião Sapateiro.Um grande e carinhoso abraço!

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  2. Oi Novais, meu amigo de sempre, eu também gosto muito de viajar no tempo e relembrar momentos ímpares e marcantes que tivemos o privilégio de viver. Um grande abraço e boas vibrações para papai Tião.

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  3. Conversas descontraídas, despretensiosas, mas sempre cheias de vida e de boas lembranças
    Só quem teve a felicidade de ter um dedinho de prosa como este sabe o quanto esses momentos nos foram tão benéficos e ainda os são, pois cada lembrança é um retorno gratificante aqueles belos e queridos momentos. Obrigada Poeta por mim levar de volta a recordações tão bem guardadas na memória.

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  4. Me lembrei de Seu Arnaldo, pai de Luiz, Kátia e Rita. A conversa era bem semelhante! Abração

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  5. Podemos rodar o mundo inteiro, estudar em quaisquer das melhores universidades do mundo, usar os mais eruditos vocabulários desde a chegada do primeiro filósofo na terra, nada substituirá o papo genuíno de cada região, com sua cultura regional internalizada E quem a viveu como eu, ou quem ainda vive como você, poeta Novais, não existe nada mais grandioso do que ouvir essas pessoas conversando do seu jeitinho verdadeiro. Corremos o risco de perdermos essa essência da nossa gente. Adorei a crônica. Já viu as linguagens do crime? Cantar para subir. comer capim pela raiz, etc..

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  6. Cada região, cada comunidade, cada povoado tem as suas peculiaridades. E dadas as circunstâncias e a época, os sotaques são muito marcantes. Bater as botas era muito usado na época dos meus avós, dos meus pais em Santa Maria. A forma sutil como eles tratavam cada situação não era desrespeitosa. Pelo contrário, era uma forma simples de tratar certas coisas até complexas. É muito prazeroso quando a gente tem a oportunidade de sentar com pessoas como seu Tião e ouvir palavras interessantes, curiosas e diferentes de um contexto gramatical domesticado. É gratificante sermos remetidos às nossas origens. Parabéns, lindA siavoN, pela crônica. Abraço, meu amigo conterrâneo!

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  7. Realmente é complicado o tema, mas as lembranças e as saudades superam. Importante lembramos das pessoas que de uma certa forma deixaram boas lembranças, com certeza seu seu pai foi uma delas

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  8. Parabens, Salsicha!(lembra-se?) Gostei da cronica.

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  9. Me acabei de rir com essa crônica, me fez lembrar meu pai que contava casos semelhantes e me fazia rir. Parabéns um grande abraço. Irany

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