sábado, 9 de fevereiro de 2019

Ave Corrente

Nosso (ainda) belo e majestoso Rio Corrente pede socorro, pois já não é mais aquele da minha geração e gerações anteriores, e a palavra "corrente" vai perdendo seu sentido. 

Rio Corrente (esq. e adiante), Rio Formoso (dir.), Ilha da Posse (foz do Rio Formoso) e Ilha do Canta-Galo, mais abaixo. Informações: Hermes Novais. Foto: Dão Serpa.

A poesia Ave Corrente foi escrita em 1990, quando da realização da X Semana de Arte e Cultura de Santa Maria da Vitória. Ela está na página 77 do livro, de minha autoria, e de mesmo nome.

Nos seus versos, faço uma viagem poética através do nosso majestoso Rio Corrente, não este que já se encontra assoreado e a pedir urgente socorro, mas o rio das décadas de 1960 a 1980, da minha geração e gerações anteriores, quando ainda se tomava banho e pescava em toda a extensão do cais, no porto de Seu Zome, na rampa de pedra, que serviu de porto por muitos anos, onde as mulheres lavavam utensílios domésticos ou "trens", roupas e as estendiam para quarar ao Sol na grama das Pedrinhas. 

Novais Neto e Silma Álvares. Porto do Jardim Fifa. Rio Corrente. Década de 1980.
Logo a seguir, vinham os extintos Banheiros dos Homens e dos Urubus. Neste último, era onde se tratavam vísceras de animais, o que atraía tais aves, daí o nome. Depois, Pedra Branca e Poço Fundo,  e mais adiante, o Banheiro das Raparigas, local frequentado pelas mulheres dos outrora famosos bordéis santa-marienses: Pingo d’Água, Pingo de Prata e Pingo de Ouro. 

Mais abaixo, ainda perdura o porto da Sambaíba, onde meu pai, Tião Sapateiro, tinha um curtume, e lá também se tratavam vísceras de animais abatidos no Matadouro Municipal, o triste e horrendo Curral da Matança, como era mais conhecido, do qual trago lembranças não muito boas. 

E, por aí vai Ave Corrente e o nosso ainda belo (e agredido) Rio Corrente nos versos da poesia, até encontrar, na cidade de Sítio do Mato (BA), o seu destino, o Rio São Francisco, o Velho Chico, igualmente maltratado e sofrido. Confiram. Muito obrigado.


Tamarindeiro durante a enchente de 1988, quando ainda não existia o barco de pedras. Foto: Novais Neto.
Ave Corrente

E lá vem ele...
Elegante, límpido, assombrosamente belo,
Deixando atrás de si um cenário de beleza,
Uma certeza de vida.
Silencioso, calcário, trazendo de tudo,
Inclusive uma grande ameaça:
A temida endamoeba histolytica.
Mas nem isso faz medo. Ele é majestoso,
Contraditoriamente, saudável, caudaloso.

E lá vem ele...
Sofrendo agressões, terríveis maus tratos.
Envenenam suas águas, sufocam-no o grito,
Desnudam-lhe as margens... a nascente,
E ele parece indiferente.
Engano puro! Espera apenas por um instante
Para mostrar sua fúria.
E aí, paga o pecador, paga o justo
E dá um tremendo susto
No nosso Tamarindeiro,
Mas, ainda assim, proporciona
Um espetáculo de força e beleza,
Quando sai do seu leito,
Que não é de morte,
E se põe vitorioso a bailar...
Muitos vão dançando, levados pelo
Embalo fatal da força da correnteza.
E aqueles que o desafiaram... Coitados!
São fracos, não podem com a Natureza.

E lá vem ele...
Tranquilo e profundo, exaltando o poder,
O ímpeto da juventude, e para trás
Vão ficando nomes pitorescos, originais,
Exóticos: Canta-Galo, Pedreiras e o Porto
Que virou Santa e trouxe muitas Vitórias.

E lá vem ele...
Fazendo amizades, procurando intrigas,
Molhando a terra, construindo banheiros:
Dos Homens, dos Urubus, das Raparigas.
Contorna a pedra, a Volta da Pedra.
Cria portos: Porto Novo, Cana-Brava.
Antes, dá um toque no Domingão
E, quando olha para trás...
Já cumpriu sua missão.
Agora... É só dormir
No peito do Velho Chico.

E lá se foi ele...
Não é preciso mistério porque,
Apesar dos seus contrastes,
Ao lado da Santa ele corre rente,
Louvando a vida, fazendo esperança,
Deixando a marca do Rio Corrente!

(NOVAIS NETO. Ave Corrente. 2. ed. Salvador: Multipress, 1990, p. 77. 120p.)

Ilha do Canta-Galo. Foto: Rosa Tunes. 2013.

Morro do Domingão. Santa Maria da Vitória (BA). Foto: Novais Neto. 2013.

Porto da Cana-Brava. Santana (BA). Acervo: Adson Oliveira. 2018.


Porto Novo. Santana (BA). Acervo: Beto Murmúrios. 1996.

Encontro do Rio Corrente com o Rio São Francisco. Foto / Reprodução: Dêniston Diamantino. 2021

Encontro do Rio Corrente com o Rio São Francisco. Foto / Reprodução: Dêniston Diamantino. 2021


Referências:

DIAMANTINO. Dêniston. Rio Corrente até a foz no Rio São Francisco (vídeo). Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=x172kXR7_I4>. Acesso em: 7 set. 2021.

11 comentários:

  1. Que maravilha é sse poema do nosso corrente que muito nos orgulha! Ainda belíssimos mas com alguma dificuldades de respirar devido às diversos degetos que ainda é jogado nele. Parabéns "Novas"

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  2. Que bacana esse seu compromisso em repaginar seus escritos e nos deixar mais próximos das nossas origens. Obrigado Nova!

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  3. João Bosco Soares dos Santos1 de julho de 2019 às 08:09

    POEMA DESLUMBRANTE
    ou MARAVILHOSA POESIA
    CANTANTE?

    RIO FAZENDO POESIA
    OU POÉTICA CANÇÃO
    DE UM RIO CANTANTE?

    UM RIO QUE ENFEITIÇOU UM POETA
    OU UM POETA MÁGICO QUE,
    SÁBIA E MAGISTRALMENTE,
    SENTE E SABE TRADUZIR
    A EMOCIONANDA ALMA DE UM RIO?

    PARABÉNS, NOVAIS, POR ESSA PURÍSSIMA
    CONSTRUÇÃO DA SUA ARTE POÉTICA.

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  4. Obrigado, meu amigo e confrade da União Brasileira de Trovadores (UBT), pelos versos seus. Fraternal abraço.

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  5. Maravilha de história , cronica , poética e uma bela pitada d humor , sem palavras muito legal essa reliquia d lembrnças maravilhosas do passado., parabéns grande Novais ...

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  6. Gavada sua historia para as gerações futuras Que espalhemos este lamento, esta súplica para que a preservaGavadaja aplicada de maneira contundente. Estarei na lyta.

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  7. Encantadora sua obra,linda poesia eu estou desnubrada com os detalhes de riquezas que o poeta Novais neto trás sobre o nosso Rio Corrente,vc Novais trás o passado e o futuro deste tão importante rio numa das suas poesias e gratificante para nos pensar o rio sobre o olhar da poesia gostei de mais deste belo trabalho verdadeira obra prima.

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Quem sou

"Bom dia, minhas 100 pombas"

Dias atrás, ao visitar minhas memórias afetivas mais remotas, guardadas nos escaninhos atemporais, deparei-me como o início dos anos de 1970...