segunda-feira, 13 de maio de 2019

Crônica para uma canção censurada

Nesta crônica, faço uma viagem aos anos 1970, em Santa Maria da Vitória e conto a relação que tive com a música “Crítica”, de Cyro Aguiar.

A música sempre esteve presente em minha vida, ora através de canções rotuladas de dor de cotovelo ou dor de meio de braço, cantadas por minha mãe, ora por meu pai, que, sentado à frente de uma antiga máquina de costura alemã, Gritzner, a costurar botinas, borzeguins e sapatos, noite adentro, assoviava as músicas Xodó, de Gilberto Gil, e Mulher rendeira, composta por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, segundo os pesquisadores, o padre Frederico Bezerra Maciel e Câmara Cascudo.

Anos 1970, cabelos longos, camisa florida e calça grená boca de sino,
em frente à casa dos meus pais, na Rua Teixeira de Freitas.
Nas décadas de 1960 e 1970, foi quando mais me vi atraído pela música. Ouvia quase (?!) todo tipo de música, desde Elvis Presley a Waldick Soriano, influenciado que fui por muitos sapateiros e seleiros vindos de Iguaí, Vitória da Conquista, Jequié e norte de Minas Gerais para Santa Maria da Vitória à procura de novos mercados de trabalho. Naquela época, aportaram em terras santa-marienses, Charqueada, Vitório, Waldick, Valdeci, Diva, Nenezinho, Dunga, Rubens, Sidney e tantos outros que a memória certamente me trai.

Uma das primeiras músicas que aprendi toda a letra foi justamente Paixão de um homem, de Waldick Soriano, a mim ensinada por Maninho de Joaquinzinho, que trabalhava de sapateiro para meu pai, posteriormente, ficando mais conhecido pelo apelido de Maninho da Churrascaria ou Maninho de Dita. Foi ele, inclusive, que me ensinou a contar até 100. Em seguida, peguei a manha e contei sozinho até 1.000. Gastei um caderno inteirinho, que era para ser usado no ano letivo. Quase apanhei da minha mãe, já que ela teve que comprar outro. Mas Maninho me acudiu.

Ainda naquele período, tanto eu quanto meu primo René Neves de Sá ouvíamos bastante as rádios Globo, Bandeirantes, principalmente, o programa O Poder da Mensagem, de Hélio Ribeiro; e a Inconfidência, de Minas. O programa de Big Ben, da Rádio Mundial (RJ), era o preferido de muitos jovens contemporâneos.

Um episódio, no entanto, marcou verdadeiramente aquela época: minha mãe me proibiu de cantar a música Crítica (1975), do soteropolitano Cyro Aguiar, acusando-me de ter criado a letra só para pirraçá-la, já que eu tinha o “bom hábito” de fazer isso com músicas que queria cantar, mas não sabia a letra e então inventava. Vejam, portanto, o que diz uma das canções de que mais gosto, motivo desta crônica, de autoria do referido sambista:

Veja como a vida passa / A solidão aumenta / E você só pensa em criticar / Acha defeito em tudo / Até me deixa mudo / Sem saber sorrir / Só fala pra ferir

Não vê que a vida passa / E a solidão aumenta / No seu coração.

Veja como você fica / Quando você olha / E depressa grita sem pensar / E fala mal daqui / E fala mal dali / Vive a resmungar e a se lamentar / Só se realiza / Quando abre a boca para reclamar

Vou-me embora daqui / Vou procurar outro lugar / Não aguento viver / Com quem só pensa em criticar / Deixe o tempo passar / E vamos ver / Quem tinha mais razão / Você vai aprender / Como viver na solidão.



Para não carregar a culpa, isto é, para comprovar minha inocência perante minha mãe, a Rádio Bandeirantes me ajudou. Certa tarde, Hélio Ribeiro, apresentador do programa O Poder da Mensagem, começou a tocar as músicas que encabeçavam as principais paradas de sucesso do País. Dentre elas, estava a que me comprometia perante minha genitora: Crítica, de Cyro Aguiar. Avisei-a e, todo entusiasmado, convidei-a para ouvir "minha" música.

— Mamãe Janda, vem ver a música que a senhora disse que eu fiz. Só sei que eu vou ficar é rico! Ela tá em primeiro lugar no Brasil. Escuta aqui no rádio.

Para surpresa minha, ao final da execução musical, ela foi taxativa:

— Num quero nem saber de nada. Você só canta é pra me pirraçar mesmo! Num é pra cantar mesmo, não. E acabou!

Nunca mais, portanto, cantei minha canção predileta, o que normalmente fazia no banheiro, onde a estimulante e providencial acústica convidava-me a desfilar meu eclético repertório, mesmo desafinado e sem saber as letras de muitas das canções que “cantava”, como as de Elvis Presley, que minha amiga e ex-vizinha Valmira Queiroz confessou-me que adorava me ouvir cantar. Quem me emprestava muitos discos, principalmente, internacionais era Fernando de dona Nena, colega de escola e de trabalho, no Funrural.

Também gostava de cantar músicas de brasileiros que adotaram nome artístico estrangeiro, o que era moda à época. Dentre eles, encabeça a lista o pernambucano de Recife, Ivanilton de Sousa Lima, Michael Sullivan, cantor e compositor de My life, canção de enorme sucesso nos anos de 1970.

Alguns cantores adotaram mais de um nome, como Fábio Jr (Mark Davis e Unkle) e Jessé (Christie Burgh e Tony Stevens). Outros, apenas um, como José Pereira da Silva (Chrystian) e Ralf (Don Elliot). São dessa safra os “estrangeiros” Dave McClean, Paul Bryan, Stevie McClean, Terry Winter, Edward Cliff e os grupos musicais Lee Jackson e Pholhas. Morris Albert (Maurício Alberto Kaiserman) foi um dos que obteve maior sucesso internacional, autor das canções She’s My Girl e Feelings. No entanto, quanto à última, ele foi acusado de plágio por um compositor italiano.

É também dessa época a música Do You Like Samba, de Cyro Aguiar, que faz bem-humorada crítica aos que ouvem estes cantores, ao debochar: “[…] Eu conheço muita gente / Que querendo ser pra frente / Bota a cara pra quebrar / Compra disco brasileiro / Pensando que é estrangeiro / E vai pra casa se esnobar […]”. E, no refrão, ele tascou inglês: “Do you like samba / I like do / If you love samba / I love you”. Fiz parte dessa referida gente, com certeza. Sem saber (e sem esnobar)!

Como já disse em algum parágrafo anterior, realmente eu gostava de cantar (e ainda gosto) músicas das décadas de 1970 e 1980. Entoava até L'ultima cosaCanzone per te. Esta última foi a melhor canção do Festival de Sanremo – 1968, na Itália, interpretada por Roberto Carlos, primeiro estrangeiro vencedor daquele festival, que completou 50 anos em 2018.

Quanto à música do Rey Roberto Carlos, Canzone per te, lembro-me da ousadia que tive de cantá-la para meu professor de Matemática, o padre italiano Augusto Baldrati que, ao final da “apresentação artística”, com minha pronúncia macarrônica, espontaneamente sorriu. E como sorriu! Porém, muito polidamente, e com seu forte sotaque italiano, me advertiu:

— Meu bichinho do mato, você está falando do jeito que se escreve! Mas não é bem assim — e ensinou-me corretamente a pronúncia de cada palavra da bela e romântica composição de seu compatrício Sergio Endrigo.

Ainda hoje, continuo a entoar quase todas estas canções em minhas viagens saudosistas e reminiscentes. No entanto, a outrora "censurada" canção do cantor e compositor Cyro Aguiar, Crítica, continua “proibida” na casa da minha mãe, agora, por um motivo até aceitável. Segundo ela, esta música lhe traz muita saudade! Aí, sim, entendo perfeitamente e evito cantá-la. Sem problema!

__________
Obs.: Crônica publicada no site Matutar Notícias em 1º/11/2017, também onde está disponível no link: <https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/cronica-para-uma-cancao-censurada/>.

13 comentários:

  1. Que texto maravilhoso, nos remetem a uma viajem sonora no tempo e espaço.

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  2. Voltei no tempo. Era doido pra usar a calca boca de sino do meu irmão + velho. Muito bom figura. Mas você tá uma figura.

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  3. Maravilha Novais. Muitas lembranças, principalmente da minha querida cidade, Jequie, a qual você sitou em sua cronica.

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  4. Que história divertidíssima Novais!!! Adorei e a música tbm, por favor, me envie via ZAP por favor...tem um monte de gente q precisando ouvi-la...kkkkk

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  5. Que saudade boa!
    Olhando a foto lembrei-me da calçada da casa de minha avó. Único lugar que era permitido ficar olhando a rua.
    Muito boa esta viagem no tempo.
    Obrigada! Só você mesmo!

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  6. Grande Novais muito bom e bela essa cronica ,parabéns e ñ pare continua sempre com essas lembranças maravilhosas do passado ., uma satisfação imensa ler. grande abraço.

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  7. Parabéns, Novais! Você fez eu fazer uma viagem ao meu passado musical. Sempre gostei de cantar! E a minha mãe, que ti nha uma bela voz, dizia-me quando eu estava fora do tom!!!

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  8. Parabéns, Novais! Voltei no tempo. Gostava muito de cantar... quando saía do tom minha mãe sempre me alertava!

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  9. Parabéns Novais. É muito bom ler suas crônicas...Mas não fica cantando para pirraçar D. Manda ta? rsrs

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  10. Maravilha! Suas crônicas nos fazem reviver a história das nossas vidas, ainda que cada um tenha a sua. E é isso que mantém as lembranças sempre vivas: alguém como você para representá-las para todo um povo. Parabéns, meu bom amigo!

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  11. como é bom sempre ouvir as história de um tempo q nuca mais votará, mais tras lenbraças q nuca mais o tempo tirará.
    abraço meu amigo Novais Neto.

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  12. Muito legal amigo Nova,ouvi muito ao programa do Hélio Ribeiro e essas músicas marcaram nossa infância e adolescência.

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