Tenho uma mania que certamente não é “privilégio” meu:
guardar coisas inúteis, badulaques, sob o improvável pressuposto de que “algum
dia vai servir”. É bem verdade, no entanto, que às vezes tal raciocínio se
confirma, como pode ser constatado nesta crônica.
Alfabeto Janoka 1977. Foto do autor. |
Naquele pedaço de papel, há um alfabeto datilografado e batizado de
“Janoka”, produto da imaginação de um primo deste cronista, George de Wilson Barros, e de João Nogueira da Cruz, amigo e ex-colega secundarista que não vejo há
muitos anos, atualmente, morador da Capital paulista, reaproximado pelo Facebook.
A finalidade do estranho alfabeto, segundo eles me contaram, era para fazer
“cola” durante as provas, a conhecida “pesca”. Achei-o bem interessante, e Joãozinho
de dona Rosa, como é conhecido meu amigo, deu-me uma cópia, que datilografei e
guardei juntos a badulaques e alfarrábios.
O Janoka, no entanto, tem grave limitação: só pode ser
escrito, jamais falado. Afinal, são apenas símbolos que correspondem às letras
do nosso abecedário e os números naturais de zero a nove. Repassei a novidade ao colega Messias Chaves, que nem deu importância, mas me ensinou a “língua do k”, sonora e facílima, que jamais tinha ouvido falar. Nela, você apenas acrescenta o “k” antes de cada letra da
palavra. Com exemplo, o vocábulo “você” fica assim:
k-vê-k-ó-k-cê-k-é. Fácil, não é?
Pois bem, como não foi difícil de aprender, virou febre, só rolava o “novo idioma”. Quando, entretanto, começamos a dele enjoar, eis que o próprio Messias aparece com outro, de som esquisito, que funciona da seguinte forma: após cada sílaba da palavra
a ser “traduzida”, juntam-se mais duas, trocando a consoante pelas
letras “f” e “r”. O termo “você” vira: vô-fô-rô-cê-fê-rê.
Que coisa mais feia! Durou bem pouco. A aceitação não foi boa e nunca mais falamos em
outro idioma que não fosse mesmo nosso românico Português, maltratado, é bem
verdade.
Não é que, dia desses, deparei-me com o conto "A língua do P", do livro "A via crusis do corpo", de Clarice Lispector, escritora e jornalista brasileira, de origem judia, nascida em Tchetchelnik, na Ucrânia. Fiquei muito
surpreso, porque também já conhecia tal língua. Só não me lembro como aprendi. Certo é que
alguém me ensinou. Depois disso, ouvi uma composição de Gilberto Gil, interpretada por Gal Costa, com o mesmo título do conto de Clarice.
O conto da escritora, por sua vez, me trouxe à luz um fato ocorrido num coletivo, quando voltava do trabalho para casa, à noite. Duas garotas conversavam animadamente num banco a minha frente. Como o ônibus se encontrava vazio,
percebi que elas se comunicavam utilizando um vocabulário diferente, como se fosse codificado. Agucei bem a
audição e constatei que falavam a “língua do p”. Assim, aquela íntima e inusitada fofoca despertou-me a
curiosidade e resolvi tirar uma de detetive.
Elas contavam — desculpem-me pela inconfidência — sobre determinada
festa que haviam estado, que “cataram” alguém e que foram parar num motel, onde
rolou o maior reggae. Sorriam muito, divertiam-se à beça e pormenorizavam a
bela e inesquecível noitada, regada a bebidas, certas de que ninguém, por perto, naquele coletivo estivesse a entender sua enigmática linguagem.
Ilustração de Jailson Borges (Jão). 2019. |
Chegou, finalmente, a hora de eu descer daquela jardineira. Antes, resolvi fazer-lhes uma gracinha, dar-lhes um susto. Virei, então, para ambas e disse-lhes, bem pausadamente: “Ê-pê-upu
en-pen-ten-pen-di-pi tu-pu-dó-pó”. “Eu entendi tudo”, traduzindo. E anônimo, da mesma forma que entrei naquela marinete, dela saí, tranquilamente!
E as duas conversadeiras, de estranho idioma (para alguns), esbugalharam os olhos e, petrificadas, entreolharam-se. Ato contínuo, deram bela, estridente e maliciosa
gargalhada. E eu me fui, deixando-as com a pulga atrás da orelha. E a deixar-lhes uma boa lição para aprender e praticar. Será?
E, assim, o alerta do dizer popular mostrou-se verídico. Cuidado, portanto!
“Mato tem olho e parede tem ouvido” que, no mundo hodierno e tecnológico, evoluiu bastante:
mato tem olho emétrope e parede, audição perfeita, na forma, por exemplo, de um simples smartphone.
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Obs.: Crônica publicada no site Matutar Notícias em 4/7/2017. Disponível em:: <https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/novais-neto-a-lingua-do-pe-dos-meus-tempos-ginasianos/>.
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Obs.: Crônica publicada no site Matutar Notícias em 4/7/2017. Disponível em:: <https://www.matutar.com.br/arte-e-cultura/novais-neto-a-lingua-do-pe-dos-meus-tempos-ginasianos/>.
👏👏👏👏
ResponderExcluirSe fosse libidinoso, certamente teria esperado para rolar algo mais. Mas, Novais é gênio, e gênio não se dá a algo tão ignominioso. Linguagem bem complicada essa.
ResponderExcluirA língua do p usei muito é super interessante rsrs. Novais com suas lembranças crônicas sensacionais.
ResponderExcluirÑ FAZIA A MINIMA IDEIA DO Q ERA A LINGUA DO p ,CREIO Q AGORA ESTOU UM POUCO POR DENTRO., GRANDE ABRAÇO ...
ResponderExcluir👏👏👏
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