domingo, 17 de maio de 2020

Crônica de um homem que sumiu

Uma comunicação incompleta ou mal feita somada a esquecimento pode resultar numa tremenda confusão. E foi disso que fui vítima. Confiram e divirtam-se.

Sexta-feira, dia nove do mês de maio do ano de 2003, antevéspera do Dia das Mães. Eram mais ou menos oito horas da noite, quando Lara, minha filha, me liga:

— Meu pai, bença! Olhe, domingo é Dia das Mães e eu vou ficar com a minha mãe. Então o senhor fica comigo no sábado. Tá bom?

— Tá bom, minha filha. Amanhã, eu te pego às oito e meia.

— Oito e meia, meu pai? Oito e meia é muito cedo!

— Então eu te pego mais tarde. Ligo antes. Boa noite e um beijo.

Este foi, resumidamente, o diálogo que mantive com minha filha naquela ocasião, uma sexta-feira, como já foi dito.

Dia seguinte, precisei ir bem cedo ao centro da cidade, a fim de comprar um CD para que ela presenteasse Irade, sua mãe. Em nenhum momento me lembrei de que deveria ligar para Lara, conforme eu mesmo prometi. Ficou registrado na minha mente – não sei como – que deveria encontrar-me com ela somente à tarde.

Quando retornava para casa, por volta das 13 horas, passei defronte à Barraca de Sandiz, que fica próxima à minha residência. Eis que, Kléber Mariano, André Catimba e outros amigos, de braços levantados e gesticulando muito, me dão uma notícia aterradora:

— Rapaz, vai pra sua casa correndo. O pessoal tá lá querendo arrombar seu apartamento. Olha, já chamaram até os Bombeiros, viu? Tão achando que você tá morto lá dentro! Sua filha já ligou várias vezes pros vizinhos pra saber onde você tá e ninguém sabe. Corre, senão cê tá é lenhado.

Ao chegar perto do conjunto onde moro, percebi muitas caras de espanto a olhar-me como se eu fosse um fantasma, e de muita alegria também, ornamentavam aquele inusitado cenário. Se bem que muito mais espantado estava eu. Alguns, principalmente, os amigos mais chegados, como dizemos, deixavam transparecer um ar de alívio e de felicidade. E me abraçavam, abraçavam!

Foi tanta conversa, tanta história — e muita risada, sobretudo — que passei um bom tempo tentando entender o que realmente havia acontecido. Refeito do imenso susto, fui até meu apartamento e agora narro-lhes o episódio no qual me meti ou me meteram.

Naquele sábado, por volta das 9 horas, Lara ligou para mim inutilmente várias vezes. Como não atendi suas chamadas, passou a ligar para sua amiguinha, Rana, minha vizinha, pedindo-lhe para ver se eu estava em casa ou havia saído para algum lugar.

Rana Severo, Lara Novais e Keully Pepe. Foto: Novais Neto, 2012.
Rana e a mãe Regina passaram também a telefonar. Como não obtinham resposta, foram até meu apartamento e, insistentemente, bateram na porta. Tudo em vão. Ficaram assustadas, porque a janela do quarto estava semicerrada e ninguém aparecia.

A esta altura, muitos vizinhos já presenciavam o fato e tentavam saber o que estava acorrendo, para ajudá-las ou somente para fofocar mesmo. Regina já havia mobilizado um batalhão: moradores dos cinco blocos penduravam-se nas janelas e davam seus palpites, sugeriam hipóteses etc.

Sharon, hoje, aos 16 anos. Foto: Anália Nunes.
Aline, filha de Mab, vizinha do bloco 5, acompanhada da sua inseparável cadelinha pinscher, por nome Sharon, a ganir todo mundo, já que late a própria sombra, providenciou uma mesa para pôr embaixo da janela. Não deu certo, ficou baixo demais.

Silvana e Júnior Agapito, casal morador do mesmo bloco de Aline, arrumaram uma escada de degraus, comumente chamada de “burro”, e tentaram entrar no apartamento pela janela. Na empreitada, Júnior, com Rana nos ombros, e seus quase cem quilos, subiu no “burro”, que não suportou o descomunal peso, e abriu as pernas.

Ada Barleta, nova moradora do apartamento 103 do bloco onde resido, no afã de ajudar, emprestou um rodo de cabo bem comprido para que batessem na janela, sem êxito também. Quase quebraram foi minha janela, isso sim!

Outra vizinha do mesmo bloco, Dadai de Anália, incorporou imaginária mulher-aranha, escalou pelos combogós da área de serviço a gritar meu nome, também sem sucesso algum. Neste momento, a empregada do apartamento 203, Marinalva, apareceu na janela e tentou tranquilizar a todos:

— Eu vi Novais hoje de manhã. Foi até ele quem abriu o portão pra mim. Eu tava sem a chave.

— Viu nada! Cê deve ter visto foi ontem. Hoje ninguém viu ele, não — retruca Regina.

Em meio a toda confusão, já a esta altura, Rana diz para a mãe que Luiz, pai de Keully, tem uma cópia da chave do meu apartamento, que fica com ele para eventual emergência. A mulher de Luiz, Bianca, entra na história:

— Luiz não tem chave mais, não, Regina. Ele deixou aqui apenas uma vez, quando foi para Santa Maria da Vitória, depois pegou e não devolveu mais.

— Que Luiz é esse, Rana, então? É o que trabalhou no Baneb com Novais? — questiona Regina, toda agoniada.

— Não, minha mãe, esse é Luiz Bandeira, pai de Luizinho Bandeira, que mora no térreo. Parece que tá ficando doída, minha mãe! É o seu Luiz do apartamento 303, pai do outro Luizinho, o gordinho — explica Rana, já demonstrando impaciência.

Ligaram para Luiz, o Luiz Fernando, mas ninguém atendeu. Subiram até o apartamento dele, bateram na porta e eis que ele aparece: cara amarrada, meio assustado, e tenta justificar-se:

— Tô muito gripado e meio surdo, com uma dor de cabeça danada, por isso desliguei foi tudo, não escutei o telefone chamar, não. O que você querem? Aconteceu o quê?

— Seu Luiz, nós queremos saber se o senhor viu Novais hoje de manhã.

— Vi, sim. Ele teve aqui na minha casa bem cedo, pegou uma peça de telefone e saiu. Disse que ia ver se achava uma igual na loja de Vandinho, um amigo dele.

— Hã, viu foi nada. Luiz deve tá é com muita febre ainda. Parece que tá é delirando. Tá com a cara mal dormida danada, amarrotada – cochichou Regina a Silvana.

A duvidar daqueles que diziam me ter visto, resolveram finalmente procurar a pessoa mais indicada, a zeladora do bloco, que sempre chega bem cedo, e certamente está socada em algum apartamento batendo papo, sem ver confusão. Foram atrás dela, gritaram e a localizaram, enfim:

— Noélia, você viu Novais hoje?

— Vi, sim. Ele fez umas palhaçadas comigo e saiu pra rua, sorrindo — e caiu na risada.

Com três pessoas, agora, afirmando que me viram, e com a situação mais calma e aparentemente esclarecida, Silvana resolve dá um tempo, isto é, esperar um pouco mais, por prudência:

— Olhe, Regina, se ele não aparecer até as duas horas da tarde, nós vamos chamar o chaveiro. Tá certo? Tá combinado?

— Tá certo, Silvana. Antes, porém, minha amiga, vou correndo lá pra casa. Acho que a “visita” chegou sem aviso-prévio. Também, né, com todo esse estresse! Ninguém merece!

Felizmente apareci antes da hora fatídica. Liguei imediatamente para Lara, que me deu uma bronca do tamanho do mundo em meio a choro e alívio. Antes, no entanto, de ir buscá-la, observei que o identificador de chamadas registrava vários telefonemas de números diferentes, dentre eles — claro — diversas vezes o número da minha filha.

Situação normalizada, finalzinho de tarde daquele sábado movimentado, Lara e Rana, na sala, a recortar figuras de revistas a fim de fazer cartazes para o Dia das Mães, travaram este hilariante e inocente diálogo, que fiz de conta não estar ouvindo, pois estava bem perto, no meu quarto, tentando cochilar:

— Lara, eu tava preocupada com uma coisa.

— Que coisa, Rana?

— Com o meu anel, Lara. Ele tá com o seu pai. E se ele tivesse morrido mesmo, como é que eu ia pegar o meu anel, Lara? Me conta.

— Oxente, Rana, era só chamar o chaveiro e abrir o apartamento dele!

— É mesmo, Lara, nem pensei nisso. Agora, Lara, se seu pai tivesse morrido mesmo, eu ia pro cemitério ver o enterro dele.

— Eu também ia, Rana. Cê acha que ia deixar meu pai ir pra lá sozinho. Nunca! — complementa Lara na inocência dos seus sete anos recentemente completados.

16 comentários:

  1. Que beleza amigo! A leitura desta crônica me fez dar belas risadas. Como é bom começar nosso dia com belas e saudáveis risadas.

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  2. Que loucura! Tratou de deixar a chave com alguém? Kkkkk Só você, viu, pra passar por essas... Lara e Rana finalizaram o enredo muito bem. Parabéns, querido, pela maravilhosa narrativa!

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  3. Kkkkkkk foi uma aflição para os vizinhos, porém muito engraçada. Gente subindo em escada, gente caindo de perna aberta, rsrsrs e o suposto morto inocente, vivinho da Silva! Parabéns Novais

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  4. Kkkkk que Regina sendo Regina kkkk adorei. Saudades desse movimento entre vizinhos. Parabéns amigo!!! Salvou o meu domingo kkkk

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  5. Imaginando figurinha chegando kkkkk adorei!!!

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  6. Kkkkk Rapaz, que historia foi essa quase mata sua filha do coraçao e os vizinho, que balacubaco da zorra viu que vc armou, muito legal essa cronica ...

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  7. Obrigado, Lucílio. Garanto que você queria estar no meio. (RSRSRS). Abraço.

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  8. Novais que situação, kkkkkk. Abraço Amigo.

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  9. Ok. Li tudo. Vc ja tinha publicado antes nao foi.
    Beleza

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