segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Se eu nascesse de novo

Inspirado numa canção de Luiz Gonzaga, por título "Se eu nascesse de novo", assim como ele, também conjecturei sobre essa instigante hipótese. Veja o que consegui.

Ao ouvir o CD “Volta pra curtir”, de Luiz Gonzaga, apresentação gravada, ao vivo, no Teatro Tereza Rachel, em março de 1972, dentro do período conhecido por “Anos de Chumbo” ou do “Milagre Econômico”, inspirei-me a escrever esta crônica, porque o Rei do Baião, num dado momento do show, conjectura como gostaria de ser caso nascesse de novo ou, com suas próprias palavras: “se eu nascesse de novo”.

A partir do pressuposto de Gonzaga, “se eu nascesse de novo”, eu mudaria alguma coisa, diferentemente dele, de que nada mudaria. No entanto, seria santa-mariense, filho de Sebastião de Novais Neves, Tião Sapateiro, e de dona Jandira Almeida Neves, professora leiga, e gostaria de ter a mesma genealogia.

Alteraria, sim, meu nome. Em vez de chamar-me Adnil Novais Neto, preferiria que fosse igualzinho ao de meu avô paterno: Adnyl de Novaes Neves, acrescentando apenas o agnome “Neto” e não subtraindo o “Neves”, como ocorreu.


Como curiosidade, no título de eleitor do meu avô, expedido em 1932, assinado pelo Juiz Eleitoral Germano Machado dos Santos, está lá, manuscrito. Profissão: artista. Ele era sapateiro e seleiro, isto é, era um artífice, artesão, artista que desenvolvia trabalhos manuais bem específicos como, por exemplo, os executados pelo alfaiate, carpinteiro etc.

Ainda a propósito do nome do meu progenitor, Adnyl, há, além de mim (Adnil), mais dois: outro neto chamado Adinil Neves de Sá e um sobrinho, Adenil da Costa Claro. Diante, portanto, de grafias dessemelhantes, se nos ativermos restritamente a ela, na verdade, nenhuma homenagem foi feita ao avô e tio. A intenção valeu, sem dúvida alguma.

Certa vez, questionei insistentemente meu pai sobre o porquê de ele haver registrado meu nome de forma incorreta. Lembro-me de que ele olhou seriamente para mim e relembrou de forma irônica o que, de fato, era para acontecer:

— Você ainda pegou foi o boi! Eu ia botar mesmo era Adnil Novais Júnior.

— Júúúnior?! Mas por que Júnior, se não tenho o nome do senhor?

— Pra ver se você queta com tanta ispicula — e botou ponto final em meu questionamento.


Até pensei numa resposta pronta normalmente dada pela garotada, quando alguém dizia a palavra "ispicula", em situação semelhante, mas não dei, obviamente: “Ispicula, seu pai toca, sá mãe pula”.

Da mesma forma que aconteceu comigo, registrou meus irmãos sem obedecer a uma lógica: Hermes, que é homenagem a meu avô materno, deveria chamar-se Hermes Ferreira de Almeida Neto, mas consta em sua certidão de nascimento, Hermes Novais Neto. Glécia de Almeida Neves que aparentemente obedece à lógica, o “de” foi acrescentado e a escrivã grafou Glécia no lugar de Glícia.

Por fim, Nena, registrada Janilza Almeida Neves. Tudo certinho não fosse a estranha mania de inventarem nomes. Janilza, como tantos outros que já vi, é uma sigla, vem de frações de nomes: “Jan”, tirado de Jandira (mãe) e “nilza”... Só Deus sabe!

Voltando “à vaca fria”, “se eu nascesse de novo”, gostaria de ouvir os mesmos palavreados do meu gueto: bola de gude calira; esfera carrusca; arapuca retrinca e pelotar. Isso mesmo, não é pilotar, sinônimo de dirigir, porém, pelotar — atirar pelota de barro com estilingue ou bodoque. Gostaria, ainda, de ouvir meu pai esgoelar:

— Jandira, cadê os minino?

— Novais t’aqui na cuzinha remedano você. E Hermes já escapuliu. Suverteu no mundo com os fii de Eli de Nona e Carlin de Dona Lourdes.

— Novais.

— Sinhô.

— Vamo grosar uns couro, dipois vamo lá na Sambaíba. Mas vê bota uma calça cumprida por causa de mordida de jararaca e pra num moiá os cambito de aruvai.

Aruvai, você sabe o que é isso? Eu explico: é uma corruptela de orvalho. Ainda menino, eu já sabia que se tratava das gotículas de água impregnadas nas folhas das plantas, de manhãzinha. Não sabia, entretanto, que o nome verdadeiro era outro, e bem mais fácil: orvalho, como já foi dito.

Gostaria, ainda, de ouvir alguém perguntar: qual sua graça?; onde eu posso verter água?; as alvíssaras tu me pagas? Aliás, não se falava “as alvíssaras”, que quer dizer boas novas, porém, “as avistas”, frase usada quando alguém queria dar boa notícia a outrem, principalmente, a um amigo.

“Se eu nascesse de novo”, gostaria de escutar outra vez e grafar tudo ipsis verbis, isto é, sem me preocupar com escrita ou pronúncia correta, assim: minino fuxiquento; minino tulemado; êta minino ladino; hômi treiteiro; cê merece é umas curriada; dexa de trapulinagem; chilepada; cambada de severgonho; dexa de curiar a vida dos zonzoto; larga de oiá a vida aêa, ingüento; ô burralidade; queta cum essa muganguera; hômi qüá; cê tá é campado; cê tá é doído pra escuvitiar; disgrama etc.

Além de tantas e tantas outras falas sui generis, eis mais algumas: minino gosta é de jogar cabriola; aquilo parece uma leqüera; minino maletoso; traste “rúim”; troço “rúim”; mulher malamanhada; para de latumia, seu chibata; dexa de caçuada; minino lutrido; mufino; enganjento; assunta o lutrimento dele; rodera de caminhão; dexa de bestage; ô moss; isturdia; para de bestajada; êta minino chei de patacoada; pode quetar o facho; xibungo; xereta; pisquila; diacho; diabo a quatro; malemal; zanoio; muganga; travial; puleja; tá pileriano; capadócio; burundanga; paúra; tendepá; forante etc.

E por conta de uma gíria, “deixa de sugesta”, que deu origem ao termo “sugesteiro”, sempre repetida pelo conterrâneo e colega dos tempos do Curso Primário, José Marcelino, de saudosa memória, conhecido até então por Zé de Antõi Bobó, foi apelidado por seus amigos, principalmente, pelos jogadores de bola, de Zé Sugesta.

Pois bem, além destas frases ou termos, há uma palavra — o verbo cuspir — que passou a ter outra grafia, ESCUPIR, isso mesmo, sem o “L”. Não confundir com esculpir, de fazer escultura. E assim, um conhecido adágio popular tomou esta risível forma: “quem escope pra riba, o escupe cai na cara”.

Ah se eu nascesse de novo! Se eu nascesse de novo, gostaria — sinceramente — de ser o que sempre tenho sido e quem sou: uma pessoa de hábitos simples, santa-mariense, colecionador de amigos, contador de causos (dizem por aí que invento, mas não é bem assim, apenas floreio um pouquinho) e fazedor de versos e trovas.

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Obs.: Crônica revista e ampliada, publicada inicialmente no Recanto das Letras em 13/6/2010. Disponível em:<https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/2317800>.

9 comentários:

  1. Ispicial esse minino . Quando sai da roça como se diz a quem vem de fazendas para a cidade .Fiquei em um Internato em Correntina . Ali aprendendo e me apoderando de costumes da cidade ,Ao regressar e me achando superior fui bruscamente repreendido por uma tia que expressou a seguinte frase:Que saliença e essa minino oce pro mode que ta na cidade priciza desse lutimento ? O que que o zoto vai pensar? Pode quetar o facho.Rapaz ciquenta e três anos atraz nunca me esqueci desse corretivo .Rabinho entre as pernas e tratei de me comportar. E pude tira a conclusão que Instrução é totalmente diferente de educação. Adorei .Não nasci de novo todavia voltei no túnel do tempo.

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    1. Adorei, meu amigo. Ainda mais, "pode quetar o facho". Minha tinha dizia muito isso. Que maravilha. Posso incluir na crônica? Havia me esquecido. Forte abraço.

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  2. Parabéns meu meu amigo, bela crônica.

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  3. Belas 'pileras meu amigo Novais. Se mudasse algo em você, possivelmente você nao seria esse "minino" "arretado" que você é.

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  4. Obrigado pela Citaçao de Carlim de D. Lurdes. Certamente que ele vai gostar.

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  5. Faltou o "cumê di galfo" e "papel higinhênico"... saudades desse linguajar!

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  6. Estou tendo a oportunidade de nascer de novo aos 40 anos
    Estou vendo a vida com os olhos diferentes pude perceber que eu tenho tudo que preciso e como a vida é maravilhosa
    Observo tudo que tenho em minha volta e acho tudo muito perfeito estou apreendendo a ter cada dia mais intimidade com Deus
    UMA SIMPLES CAMINHADA perto da natureza conversando.com alguém escutando o canto dos pássaros, tomando um banho de sol ou um banho de chuva.
    Acordar e pensar em viver o hoje com muita alegria e simplicidade o amanhã não pertence a nós
    Que a paz e o amor invada nossos corações
    Que todos possamos nascer de novo e dar valor a vida

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    1. Bom dia, Rafael. Muito bom que a vida lhe tenha proporcionado belos momentos e você sempre agradecendo. Abraço.

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Crônica para os meus Sessenta e Sete

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