sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Jardim Jacaré e sua história

Nos anos de 1920, quando foi iniciada a construção do prédio da Prefeitura na administração do intendente Clemente de Araújo Castro (1921-1924) e concluída no mandato do também intendente Elias de Sousa Borba (1924-1928), o logradouro onde é a atual Praça do Jacaré, em Santa Maria da Vitória, passou a ser conhecido como Praça do Concelho em alusão à Câmara de Vereadores, à época, denominada Concelho, que funcionava no referido edifício, inclusive a Cadeia Pública, que ficava no térreo. Essa praça é citada no livro Porto Calendário, de Osório Alves de Castro. Posteriormente, ela recebeu o nome de Praça 15 de Novembro.

Praça da Prefeitura (Praça 15 de Novembro) e a antiga ponte de madeira. 

Praça do Concelho


Embora já houvesse o cais, um pouco mais baixo, não havia calçamento. Nos períodos chuvosos, virava uma lagoa. Em outros momentos, ela se transformava em campo de futebol e palco de manifestações culturais e folclóricas, como as cavalhadas, que encenavam confronto entre Mouros e Cristãos. Serviu também, na segunda metade da década de 1960, aproximadamente, de espaço de treinamento físico ministrado pelo Cabo Baltazar, da PM/BA, cuja intenção era formar um grupo de escoteiros, o que não se configurou porque o mesmo foi transferido para outra cidade.

Praça da Prefeitura (Praça 15 de Novembro) alagada. 

Antigo cais da Praça da Prefeitura (Praça 15 de Novembro). 

Cavalhada – Encenação de batalha entre Mouros e Cristãos


Meu pai, Tião Sapateiro, fazia parte como cavaleiro, e minha mãe, Jandira Almeida, em algumas ocasiões foi princesa dos Cristãos. Rolando Laranjeira (duas vezes prefeito) era o embaixador dos Mouros, personagem com quem ela contracenava, cujo diálogo minha genitora mantém vivo na memória. O evento era organizado por Nezinho Lisboa, marido de Dona Nita, da famosa que levava seu nome, a Padaria de Dona Nita.

Jandira Almeida e Rolando Laranjeira*
*Foto: Reprodução / Facebook / Rolando Adson Laranjeira Lessa
Cavalhada na Praça 15 de Novembro (Praça do Jacaré). No destaque, Tião Sapateiro.

Evanisa Fé Souza


Entre os anos 1955 e 1958, quando era prefeito Arnaldo Pereira da Silva, pretendeu-se lotear aquela área, isto é, prolongar a Rua Dr. Cotias Lebre, rua da passarela que interliga Santa Maria a São Félix do Coribe, até o limite do riacho, onde é o atual Canecão Restaurante e Pizzaria. Aí entrou em cena a destemida Evanisa Fé Souza, primeira vereadora da cidade (1955-1958), que era contra o projeto.

Apoiada por seus pares, numa sessão de ânimos muito acirrados, o nefasto projeto foi definitivamente rechaçado. Não fosse sua corajosa atitude, a Praça do Jacaré estaria hoje reduzida a duas simples ruas: uma na beira do Rio Corrente, a Cotias Lebre, como já foi dito, e outra virada para a Prefeitura a dar continuidade à Rua Cel. Clemente de Araújo Castro, rua do Centro Educacional Santamariense.

Evanisa Souza Ramos ou Dona Evanisa de Mundinho, como ficou conhecida após casar-se com o promotor de justiça Clarismundo de Souza Ramos, santa-mariense, elegeu-se vereadora ainda bem jovem, com pouco mais de 18 anos, mesmo sem ter vocação política e sem distribuir um único panfleto. Quem fez sua campanha política foi tão somente a mãe, Carmelina Fé de Souza, Dona Camé.

Caso o projeto houvesse vingado, o centro de Santa Maria da Vitória disporia apenas de duas modestas praças: a da Bandeira, ao lado da Igreja Matriz, cujo obelisco foi instalado quando era prefeito Clóvis de Araújo Castro (1937-1938) [o jardim foi construído pelo prefeito Leônidas Borba (1961-1962)]. E a praça entre o riacho e o Mercado Municipal, construída pelo então prefeito Rolando Laranjeira Barbosa (1962-1965), na qual havia um jardim na forma estelar, apelidado Jardim Estrela, e o busto do Fundador da cidade, o Tenente-Coronel Joaquim Afonso de Oliveira.

Feira municipal no Jardim Estrela. No destaque, busto do fundador da cidade.
Obelisco da Praça da Bandeira. Déc. de 1930
Foto: Reprodução / Facebook / Manoel Q. Assis
Nessa área, acontecia a feira municipal da cidade aos sábados. No primeiro mandato de Prudente José de Morais (2001-2004), a praça foi reconstruída, fechada para o tráfego de veículos e recebeu o nome de Praça dos Afonsos, atendendo pedido de Maria das Vitórias Oliveira Lima (Vitorinha, 80 anos), bisneta do fundador, como homenagem à família Afonso de Oliveira.

Praça dos Afonso. Lanç. do livro Meu Lugar é Aqui no Centenário de Santa Maria da Vitória, de Novais Neto.

Adão Fé Souza


O prefeito seguinte da cidade foi Roberto Borges (1959-1960), que veio a falecer durante o exercício do mandato. Quem deveria assumir o cargo de prefeito seria o presidente da Câmara de Vereadores, José de Lima Athayde (Juca Athayde), pois não havia a figura do vice-prefeito. Porém, numa manobra política da qual não participou Leônidas Borba, odontólogo formado pela UFBA, ele foi indicado. A contragosto, aceitou o desafio e completou o mandato (1961-1962) com dignidade e honradez.

Vereadora Evanisa Fé Souza e o deputado estadual Adão Fé Souza
Após Dr. Leônidas, como era chamado, elegeu-se prefeito Rolando Laranjeira Barbosa (1962-1965), quando foi iniciada a construção de um jardim no centro da Praça 15 de Novembro com verbas oriundas de emenda parlamentar do primeiro deputado estadual santa-mariense, o advogado Adão Fé Souza, irmão de Dona Evanisa. A verba também serviu para construção da ponte ao lado do Canecão, que era de madeira, e logo virou ponto de encontro dos jovens nas cálidas noites santa-marienses.
Barracão da Companhia do Vale do São Francisco (CVSF) e ponte de madeira.

O jacaré de Adão Souza


Adão foi suplente entre 1963 e 1967, tendo assumido o mandato porque o titular foi para uma secretaria de Estado. Depois foi eleito deputado para o período de 1967 a 1971. A obra da construção da praça e do jardim ficou inconclusa no governo de Seu Rolando, como era tratado. Por isso, quando o rio transbordava, apenas a parte alta do jardim podia ser vista, “assemelhando-se” às costas de um jacaré. Os adversários políticos do deputado, em tom jocoso ou de deboche, apelidaram-no “jacaré de Adão Souza”, o que caiu no gosto de muitos galhofeiros.

Assim, não se sustenta a “história” propagada de que teria sido pela presença de jacarés, que pode sim ter existido, já que ali se juntava água. No entanto, se dessa forma fosse, o nome já teria vindo desde antes do início da construção do jardim, o que de fato não ocorreu. Essa “história” fantasiosa fixou-se pelo fato de serem colocadas esculturas de jacarés no novo jardim, imagens que no antigo inexistiam, pois não havia referência à presença daquele réptil. Aliás, no antigo jardim, tentou-se fazer isso, mas não prosperou.

A conclusão da obra só veio a ocorrer na gestão de Péricles Laranjeira Braga (1966-1970), sobrinho de Rolando, quando se aumentou a altura do cais, toda a área foi aterrada, calçada, e o local oficialmente renomeado Praça Gov. Luís Viana Filho. O jardim então passou a ser chamado de Jardim Jacaré que, de tão famoso, terminou por dar nome ao logradouro: Praça do Jardim Jacaré. Quem não gostou disso foi Dr. Leônidas, que se recusava a chamá-lo assim, preferia dizer Praça do Réptil, visto que o estrambótico apelido ofuscou o nome de seu amigo, o ex-governador baiano Luís Viana Filho.

A exemplo de Leônidas Borba, o então deputado Adão Souza não gostou do nome oficial do logradouro. Ele queria que fosse Praça Dr. José Borba, seu amigo, ex-prefeito (1949-1950), irmão de Leônidas, para o qual dedicou a poesia “Lealdade!”, por ocasião do assassinato daquele pelo Cabo Sarapião em 20/10/1951. O deputado confidenciava a amigos que se um dia fosse prefeito, mudaria o nome da praça. A justificativa para não adoção do nome de José de Souza Borba, médico conhecido por Dr. Zuza, era que ele nominaria um futuro hospital municipal, o que, de fato, ocorreu no ano de 1979, no Bairro da Sambaíba, quando Tito Soares exercia seu primeiro mandato (1977-1982).

Adão Fé Souza, cuja ponte que liga Santa Maria da Vitória a São Félix do Coribe, leva seu nome, nasceu em 25/3/1933 e faleceu em acidente automobilístico ocorrido numa estrada rural próximo a Bom Jesus da Lapa, após voltar de uma pescaria, no dia 17/8/1974, aos 41 anos. Dona Evanisa, sua irmã, ainda traz vívida na memória a primeira estrofe da poesia “Minha terra”, escrita por ele, cujo manuscrito extraviou-se, que assim descreve a localização de sua cidade natal: “Às margens do Rio Corrente, / está ela bem em frente / ao Morro do Domingão, / a minha terra querida, / esmeralda adormecida / nos rincões do meu Sertão. // [...]”.



Foi também o ex-prefeito Braga que mandou fazer em Salvador, numa casa de fundição localizada no Pelourinho, a estátua de um remeiro, de artista não identificado, que foi colocada em frente aos Correios, quando esse nem ficava ali, numa área gramada, como indispensável homenagem a esses trabalhadores que tanto progresso levaram para Santa Marida da Vitória transportando mercadorias.

Jardim Jacaré, os três banquinhos e a escultura em homenagem ao remeiro (destaque em amarelo).
Foto: Reprodução / Facebook / Maria Astéria Lisboa Barros.
Quando Tito Lívio Nogueira Soares foi prefeito municipal (1989-1992), a Câmara dos Vereadores iniciou um projeto de lei que propunha mudar o nome do local para Praça do Jacaré, que Tito, de pronto, vetou. Não se dando por derrotada no seu propósito, a Câmara aprovou uma resolução que concretizou seu intento. Nesse caso, o atual nome do logradouro é, legalmente, Praça do Jacaré e não Gov. Luís Viana Filho.

Jardim Jacaré


Jardim Jacaré e uma das rampas em frente ao Banco do Brasil. Foto: Novais Neto, 1983

Praça do Jardim Jacaré. Enchente de fevereiro de 1980.

O Jardim Jacaré passou a ser referência em toda a região. Seu traçado retangular trazia uma rampa de cada lado, duas maiores e duas menores que davam acesso ao centro, parte bem mais alta, mais ou menos dois metros acima do nível dos passeios laterais. No centro, havia um fosso onde deveria ser uma fonte luminosa no projeto original, o que não se concretizou, e foi aterrado. Em cada canto do quadrado central havia um banco que se tornavam locais disputadíssimos. Já os bancos, no entorno do jardim, foram doações de proprietários de casas comerciais e famílias santa-marienses, cujos nomes estampavam em gravações em baixo relevo nos encostos.

Jardim Jacaré visto pelos traços de Zuza Pintor. Década de 1970.
Ao fundo, à direita, a antiga Escadinha que dava acesso ao Alto do Menino Deus.


Em razão das rampas, o jardim ficou com quatro quadrantes, onde havia em cada um deles dois conjuntos com três banquinhos. Dizíamos que dois deles eram destinados ao casal e o terceiro, destinado à “vela”. Outro fato curioso é que os homens andavam num sentido e as mulheres em sentido contrário para facilitar o encontro, claro. Quando isso acontecia, ficavam por ali mesmo a circular, conversando, ou procuravam algum banco livre, o que, nos finais de semana ou em dias festivos, era missão por demais difícil.
Jardim Jacaré em construção. Década de 1960.


Hermes Novais, Lia Álvares e Novais Neto em um dos bancos do centro.
O afamado jardim marcou gerações, propiciou encontros amorosos que resultaram em consolidados casamentos. Era local para papos futebolísticos, encontro os mais diversos, desfiles cívicos, manifestações culturais, comemorações várias, carnavais de rua etc. Havia no jardim bancas de revistas e, em frente ao Banco do Brasil, uma torre com propagandas comerciais e um aparelho de televisão acoplado a ela, cujos sinais vinham de uma torre, TV Aroeira, instalada no Morro do Domingão. A citada torre foi instalada quando era prefeito da cidade Francisco Alves da Silva (1983-1987), Chiquinho da Almasa. Foi também na gestão de Chiquinho que foi instalada uma fonte luminosa no centro do jardim, na parte alta, que durou bem pouco tempo e foi removida.

Torre de propagandas comerciais com um aparelho televisor.
Foi neste jardim que universitários dos mais variados países, oriundos do Projeto Rondon, para lá se dirigiam e agitavam a cidade com gincanas, plantio de árvores etc. Certa vez, mais de cinquenta estudantes lá estiveram. Era nesse local que ciclistas desafiavam os limites do corpo, alguns deles chegando a circular o jardim por uma semana em cima de uma bicicleta. Lá também, brutamontes seguravam jipes acelerados, amarrados por cordas. Foi também nesse jardim onde aprendi a andar de bicicleta, uma Monark vermelha, reluzente, de Zé de Paula, pela qual ele tinha enorme cuidado.

Faixa da I Semana de Arte e Cultura. Ano de 1980.
Armação de barraca para festa junina. Alunos do Curso Básico do Centro Educacional Santamariense.
Na foto: Ana Rosália Fernandes e Novais Neto. Ano de 1975.
É verdade também que o local não foi palco somente de bons acontecimentos. Episódios lamentáveis também ocorreram como, por exemplo, o assassinato de Zezinho de Dona Maria Monteiro e a queima de corpos de presos retirados da Delegacia, acusados da morte da estudante de Medicina, Múcia Verbênia, filha de Milu e do ex-prefeito Chiquinho da Almasa, em 1989. Este fato repercutiu negativamente o nome da cidade e estimulou outras pessoas em outros locais a agirem da mesma forma, inclusive a intitular eventos semelhantes como “A justiça de Santa Maria da Vitória”. Muito triste!

Reprodução de imagem do Jornal A Tarde, 2/10/1989.

Demolição do Jardim Jacaré


O Jardim Jacaré envelheceu e precisava verdadeiramente de uma reforma ou, apenas para usar uma palavra da moda, de uma “revitalização”. Na gestão de Nery Pereira Batista (1997-2000), o jardim foi demolido. Árvores frondosas e representativas da nossa flora, como um quarentenário pé de tamburi, foram derrubadas, mesmo sob protestos de estudantes e populares. Na ocasião, eu, Novais Neto, e Erlônio Tonhá fomos autores de uma carta aberta dirigida à população santa-mariense para demonstrar indignação e repúdio pelo ato lamentável.

Carta aberta redigida por Erlônio Tonhá e Novais Neto. Fev. 2000
Novo Jardim Jacaré


O prefeito concluiu a gestão, mas o jardim ficou em ruínas. Somente no final do primeiro mandato de Prudente José de Morais (2001-2004), o novo jardim foi estendido até o cais e a praça reconstruída. O jardim, no entanto, sem guardar qualquer semelhança com o outrora local glamoroso e histórico. Mesmo assim continuou a ser chamado Jardim Jacaré. E a população também não deixou de chamar o logradouro de Praça do Jacaré, nome, inclusive, como já foi dito, aprovado por resolução da Câmara de Vereadores, quando o prefeito era Tito Soares (1977-1982), e não Praça Gov. Luís Viana Filho.

Não resta dúvida, ademais, que a praça ficou bonita, todavia, do antigo Jardim Jacaré, suas memórias continuam vivíssimas em fotos antigas, principalmente, para quem teve o privilégio de conhecê-lo na sua glória e esplendor. Jardim Jacaré de marcantes e inolvidáveis recordações.

Novo Jardim Jacaré em uma foto feita do ultraleve de Dão Serpa. Foto: Hermes Novais, 2008.
O novo Jardim Jacaré, que teve a praça asfaltada na gestão do prefeito Renato Rodrigues Leite Júnior (Renatinho, 2017-2020), acaba de passar ultimamente por uma providencial revitalização e readequação no governo do atual prefeito, Antônio Elson Marques da Silva, mais conhecido por Tonho de Zé de Agdônio, que tem mandato previsto para o período de 2021 a 2024.

Observações indispensáveis


Vale registrar que as informações aqui contidas, muitas delas eu já as conhecia, porém tive o devido cuidado de confirmá-las com pessoas idôneas que participaram diretamente dos acontecimentos, portanto, testemunhas oculares da história, vez que nasci no ano de 1957 e, nos anos 1960, apesar de lembrar-me fugidiamente de certos fatos, ainda era um menino.

Assim pensando, mantive contato com Evanisa Ramos (87 anos), Péricles Braga (84 anos, através do filho Sérgio), Dilza Borges (83 anos), filha do ex-prefeito Roberto Borges, e Tito Soares (85 anos). Além desses, já havia confirmado informações com meu pai, Tião Sapateiro, falecido aos 91 anos, em 2020, como também algumas me foram narradas por Clodomir Morais (1928-2016). Confirmei outros episódios com minha mãe, Jandira Almeida Neves (91 anos), Washington Antônio Simões (72 anos) e Joselino Rodrigues de Souza (Josa do IBGE, 74 anos).

Praças que só existem os nomes ou sequer chegaram a ser praça


Infelizmente, atitudes como a de Dona Evanisa, quanto a não deixar lotear a Praça do Jacaré, são raríssimas, por isso deveriam servir de exemplo, visto que algumas áreas de Santa Maria da Vitória, que poderiam ser belas e aconchegantes praças, locais de lazer ou simplesmente para circulação de ar, são escassas para o tamanho da cidade.

Enumero, a seguir, algumas dessas áreas que presenciei as mudanças, sendo, portanto, testemunha ocular e não apenas alguém que ouviu falar:

1. Praça do Pequizeiro – área denominada Praça Tiradentes, que engloba desde a Igreja Assembleia de Deus (onde havia uma gameleira), e os prédios escolares Padre Luiz Palmeira, Roberto Borges e Rolando Laranjeira Barbosa. Moradores dessa “ex-praça”, como Antônio Fernando de Oliveira (Professor Kaofo), ainda hoje recebe conta de energia elétrica em nome do pai, Abílio Antunes de Oliveira, com o nome do antigo logradouro.

Na parte alta da “ex-praça”, entre os prédios da Conab e o Fórum Desem. Joaquim Laranjeira, um pouco mais abaixo, onde ficam as casas da atual Rua Henrique Dias, a rua de Nissão, havia dois frondosos jatobazeiros, que foram cortados.

Praça Tiradentes antiga Praça do Pequizeiro. A casa do Professor Kaofo fica mais ou menos ao centro.
Conta de energia elétrica ainda com nome da Praça Tiradentes (vide destaque).
2. Estádio Wilson Barros – área em frente à Casa da Cultura Antônio Lisboa de Morais, que abrange desde os laboratórios Plasma e Santa Maria (Laboratório de Tadeu), Ministério Público e autoescola. Nesse local ficava também a antiga Quadra de Chiquinho da Almasa (ex-prefeito), a segunda da cidade, uma vez que a primeira localizava no Bairro da Sambaíba, na Sede do antigo Clube Santa Maria, antes da existência do mesmo, no local conhecido por Manga dos Crentes. Foi construída por funcionários do Banco do Brasil no início dos anos 1960.

3. Praça Argemiro Filardi – área defronte ao Cemitério Santa Verônica, onde ficam duas “caixas”: a antiga caixa d’água da cidade e a Caixa Econômica Federal, além da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e dentre outras construções. Portanto, como praça restou apenas o nome. Nesse local ainda pude assistir a uma das últimas cavalhadas da cidade, que para aqui veio após a construção da Praça Gov. Luís Viana Filho (Praça do Jacaré). Na ocasião, existia apenas a caixa d’água e uma fileira de meia-dúzia de casas em frente ao referido cemitério.

4. Bairro Jardim América – local onde se situa a atual Prefeitura Municipal. É oportuno registrar que na enchente de 1988/1989, quando toda parte baixa da cidade ficou submersa por uns 15 dias, era para esse local que as pessoas se deslocavam para conversar, divertir, espairecer. Atualmente, ficou menor devido à construção do prédio da Câmara de Dirigentes Lojistas (CBL) de Santa Maria da Vitória e São Félix do Coribe.

5. Bairro do Malvão – região central no início da Avenida Brasil, que dá acesso à Prefeitura Municipal. Lá também, segundo se comenta, será uma praça, no entanto já começou a ficar menor com a construção do prédio do INSS. Resta-nos torcer para que tal empreendimento se realize, a final, nossa Santa Maria carece de áreas de encontros, lazer, ventilação etc.

Agradecimentos especiais


Aos irmãos Dilson e Tinho de Evanisa, Fernando Kaofo, Hermes Novais, aos casais Jairo Rodrigues e Norma Borba, Tito Soares e Dilza Borges; a Demazinho Rodrigues, Beto Soares, Sérgio Braga, Paulo Martinez, Washington Antônio, Joselino (Josa do IBGE), Valdimiro Lustosa Soares (Guri), Osmir Celestino e a Justino Cosme.

Tito Soares, Dilza Borges e Novais Neto. Dez. 2021.

Novais Neto e Tinho de Evanisa. Dez. 2021.

Referências


ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DA BAHIA – ALBA. Dep. Adão Souza. Disponível em: <https://www.al.ba.gov.br/deputados/ex-deputado-estadual/5000007>. Acesso em: 19 dez. 2021.

CASTRO, Osório Alves de. Porto calendário. Coletânea Terra Forte, v. 4. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1961. 320 p.

CRUZ, João Nogueira da. Adão Fé Souza: personagem vivo da história de Santa Maria da Vitória. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/6547835>. Acesso em: 9 jan. 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Santa Maria da Vitória. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ba/santa-maria-da-vitoria.html>. Acesso em: 9 jan. 2022.

OLIVEIRA, Rita de Cássia. Foto da Praça do Jardim Jacaré. Disponível em <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10217200213334956&set=pb.1159400016.-2207520000..&type=3>. Acesso em: 19 jan. 2022.

SILVA, Jaime Pereira da. Santa Maria da Vitória: cem anos de história. Santa Maria da Vitória: Edição do autor, 2004. 172 p.

Correção (31/10/2023)

A correção que se pretende fazer nesta crônica é com relação ao nome da praça que abriga o Jardim Jacaré. Segundo as informações que me foram dadas pelo ex-prefeito Tito Lívio Nogueira Soares, relativas ao seu segundo mandato (1989-1992), houve um projeto de lei de iniciativa da Câmara de Vereadores, apresentado ao Executivo, quando era presidente do Legislativo, Plínio da Silva Leite, que o citado prefeito vetou.

Em pesquisa realizada pelo competente e solícito arquivista Altemir José Tomaz, concursado desde o ano 1990, não se constatou que a Câmara tenha derrubado o veto, consequentemente, sancionado a lei. Portanto, o nome do logradouro continuou a ser Praça Gov. Luís Viana Filho.

No entanto, no ano de 2002, quando Plínio da Silva Leite, novamente presidente da Câmara e agora do mesmo grupo político do então prefeito Prudente José de Morais, no seu primeiro mandato (2001-2004), apresentou um projeto de lei que foi sancionado em 29/8/2002, vindo a ser a Lei nº. 618/2002, que “Denomina de Praça do Jacaré a atual Praça Dr. Luiz Viana Filho, e dá outras providências”.



Com relação a essa mesma lei, que estabelece no seu “Parágrafo Único - Na Praça do Jacaré, deverá ser construído uma estátua evocativa ao Jacaré, como símbolo da referida Praça.”, há uma incorreção: o nome antigo do logradouro é Praça Gov. Luís Viana Filho e não Dr. Luís Viana Filho, como pode ser visto em uma placa remanescente afixada no Setor de Custódia, da Polícia Civil da Bahia, ao lado dos Correios, na praça em questão, centro da cidade de Santa Maria da Vitória.


Placa afixada no Setor de Custódia, Delegacia de Polícia, ao lado dos Correios. Foto: Novais Neto.

Como se sabe que esta placa é certamente das primeiras? Nas placas antigas, não haviam propaganda comerciais como as de hoje, inclusive há uma que veio após esta, afixada na lateral direito do Banco do Brasil, quando da reconstrução e expansão do Jardim Jacaré, por Prudente José de Moraes, em que há propaganda. As atuas, vale indignar, destacam mais os apelos comerciais do que o nome do logradouro.


Placa afixada na lateral direita do Banco do Brasil. Foto: Novais Neto.

Por fim, para que não pairem dúvidas, e amparado no que determina a Lei nº. 618/2002, o nome do atual logradouro que abriga o Jardim Jacaré, que não tem o glamour, o charme, nem a história do primitivo, está instalado, é Praça do Jacaré e não Governador ou Doutor Luís Viana Filho. E apenas para registro, já o nome do prédio localizado no Alto do Menino Deus é Escola Dr. Luís Viana Filho. Foi lá que estudei o 4º Ano Primário, no ano eleitoral e trágico de 1970, com a professora Dilza Borges Soares.

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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Na sala de aula - Vibrissas nasais

Bem curtinha, mas nem por isso indigna de registro, esta historieta mostra que o aluno pode surpreender seu mestre. Isso aconteceu no Ginásio Comercial de Santa Maria da Vitória, Colégio Paroquial ou Colégio dos Padres, como também era conhecido o Centro Educacional Santamariense [sic], onde estudei os cursos ginasial, básico e técnico em contabilidade.

Segundo me contaram, e aí bato de cara com o dito popular que assegura que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Neste aqui, ainda que quisesse, não daria. Por isso, garanto: vou vender meu peixe pelo mesmo preço que o comprei. Afinal, confirmei o episódio com o protagonista da narrativa.

Aula de Ciências Naturais, terceiro ano ginasial. O professor explicava o funcionamento do aparelho respiratório humano. E ele era daqueles que impunham respeito, raramente brincava e não perdia chance para dar lição de moral em quem quer que seja. Pupilo algum perturbava sua aula. Meter-se a besta com ele era correr sério risco de advertência ou suspensão. Basta dizer que, quando ele entrava na sala de aula, todos o recebiam de pé e esperavam sua ordem para voltarem a sentar. Era a tônica dos anos 1970.

— Muito obrigado! Podem sentar, por obséquio!

A aula transcorria sem novidade. O assunto não era dos mais atraentes. E lá pelo finalzinho, com os alunos já doidos pelo recreio para lancharem (e conversarem, porque durante a aula não se atreviam), o mestre concluiu assim o desinteressante conteúdo didático:

— Esses pelinhos que temos dentro do nariz, chamados vibrissas nasais, não estão aí para enfeite. Eles servem para filtrar o ar que respiramos. Retêm as partículas de poeira em suspensão no ar que, juntadas à secreção natural do interior das fossas nasais, formam o que comumente chamamos meleca, caraca. Por esta razão é que devemos limpar direito as narinas, quando vamos banhar ou lavar o rosto. Isso faz parte da higiene pessoal. Entenderam? Claro que todos entenderam, mesmo assim alguém perguntou:

Vibrissas felinas ou bigode dos gatos. Foto: Thiago Afonso.
— Professor, tem gente que come, não tem? — perguntou displicentemente René de Sá, o filho de Nenzinha de Luiz Soldado.

— É, René, tem gente que come. E você come, René?

— Eu não. E o senhor? — replicou de supetão o destemido pupilo.

— Eu também não, René! — esquivou-se o sisudo mestre com a cara sambando ante o inesperado questionamento do intrépido educando.

“É isso aí. Brinquei, tive de aguentar as pontas”, comentou o professor na Secretaria da escola com seus pares, que reagiram às gargalhadas. “Toooma, vai provocar aluno!”, foi o que ele mais ouviu.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

“Burro calado é um sábio”

Há pessoas que dedicam tanto sua vida à defesa dos animais, dos pobres animais, que a história se encarrega de eternizá-las. Inúmeras são essas pessoas que, felizmente, a pretexto desta crônica, é sempre bom lembrar de alguns nomes famosos e de pessoas comuns integrantes deste seleto grupo.

São Francisco de Assis, o patrono da Ecologia, protetor dos animais e das plantas, os quais ele chamava de “meus irmãos”, segundo contam, tinha até o dom (e privilégio) de falar com os bichos. Brigitte Bardot, premiada atriz francesa, militante pelos direitos dos animais, tem lugar destacado, além dos destemidos integrantes do Greenpeace na diuturna defesa das espécies ameaçadas de extinção.

No Brasil, os irmãos Vilas-Boas e Chico Mendes não podem ser esquecidos, dentre outros. Como também merece ser citado, não que tenha sido necessariamente protetor dos irracionais, o ex-ministro do Trabalho, da Era Collor, Rogério “Imexível” Magri. Segundo noticiou a mídia da época, ao ser flagrado e interpelado por um repórter, porque estaria levando seu cão ao veterinário em veículo oficial, ele teria respondido enfaticamente:

— Cachorro também é ser humano!


Um acontecimento, entretanto, mais próximo às pessoas que me rodeiam, foi-me narrado por um amigo coribense. Segundo ele, Hermes, meu irmão, ao passear pela feira livre na cidade de Coribe, Extremo Oeste baiano, deparou-se com um homem vendendo uma guariba. Guariba é uma espécie de macaco, também conhecido por barbado ou bugio, catalogado entre os animais ameaçados de extinção.

Hermes ficou penalizado ao ver o infeliz símio, uma fêmea, amarrada pela cintura, a gritar desesperadamente, tentando soltar-se. Indignado, perguntou àquele senhor quanto queria pelo bicho.

— Cinquenta real — respondeu secamente o feirante.

Meu irmão consultou a carteira e viu que não dispunha daquele montante. Pediu ao amigo acompanhante que o aguardasse ali mesmo na feira, enquanto ele iria providenciar a grana.

Valendo-se da sabedoria popular que assegura: “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro no bolso”, saiu em busca desse amigo e, sem muita dificuldade, já que naquele rincão ele os tem muitos, logo retornou com o dinheiro contadinho.

Comprou a sofrida macaca e, com o mesmo amigo que o acompanhava na feira, partiu para os Gerais, lá para as bandas de Correntina, onde iria soltá-la.

Aliviado e feliz, ao chegar ao destino planejado, bem no seio do habitat daquele sofrido e maltratado primata, livrou da corda a pobre macaquinha e devolveu-lhe a liberdade tão brutalmente arrancada.

Outro episódio, não dramático e comovente com este, porém a beirar o pitoresco, capaz de provocar frouxo de riso, a vítima desta vez foi exatamente este que escreve.

Tenho uma amiga de longas datas, Dina Marchesini, protetora fervorosa dos animais, que chega a valer-se da famosa frase creditada ao poeta português Alexandre Herculano, que teria dito: “Quanto mais conheço os homens, mas estimo os animais”, para justificar o amor que ela dispensa pelos bichos, principalmente aos cães e gatos.

Ela é médica pediatra, professora acadêmica, conhecedora profunda da Homeopatia e seguidora e praticante dos ensinamentos do médico alemão Samuel Hahnemann, pai daquela especialidade médica, fez-me, certa ocasião, vítima das minhas próprias brincadeiras, que ela tão bem as conhece.

Um dia qualquer, à noite, ao digitar uma aula que ministraria a seus alunos de pós-graduação, na UFBA, não havia jeito de eu entender o que ela me explicava. Tentou, tentou, até que determinada palavra por ela pronunciada ativou-me os neurônios adormecidos e, em tom de gozação, exclamei:

— Vixe Maria, eu sou é um jumento mesmo! — foi tão somente o que disse.

Dina olhou-me fixamente por alguns instantes. E eu fiquei até a pensar, como seria natural, que ela fosse me defender e dizer que apenas não entendi ou — sei lá! — que houve falta de clareza da parte dela. Mas não. Ela continuou a olhar-me detidamente e em tom de reprovação, discursou serenamente:

— Ô, meu Deus do Céu, porque tudo que não presta neste mundo vai pra conta deste pobre coitado? Logo ele, nosso irmãozinho inferior, que carregou Nosso Senhor Jesus Cristo nas costas! O jumento é um animal sagrado! Pelo amor de Deus, ele não merece isso, não! Tem dó!

Fiquei sem ação, absorto. Mentalmente, até cogitei corrigir-me e dizer que eu não era um jumento, mas, um burro. Percebi, entretanto, que o burro também é animal e aí o tiro poderia sair pela culatra. Nesse caso, o mais prudente seria ficar calado. E foi o que fiz. Afinal de contas, “burro calado se torna sábio”, ensina-me a oportuna máxima popular.

Lembrei-me — e só fiz lembrar mesmo! — do nosso inesquecível Luiz Gonzaga, Seu Lua, o Rei do Baião, que soube por certo agradar à minha amiga, quando afirma categoricamente em uma de suas memoráveis composições, juntamente com o amigo Zé Clementino, que “O Jumento é nosso irmão”.

“Seu Lua, Seu Lua, por que não fui me lembrei disso antes?!” 
—  mental e tardiamente lamentei.

Foto: Reprodução / Internet.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Tertúlia flácida para acalentar bovídeo

Não é a intenção desta crônica testar o vocabulário do leitor, longe disso, mas você sabe o que vem a ser um sujeito indobeclível? E uma pessoa sub-relevapes, o que será, afinal de contas?

Certamente não sabe e jamais saberá. Dicionarista algum registrou estes termos. Mas eles existem. Não têm sinônimos. São adjetivos comuns aos dois gêneros. Servem tanto para elogiar quanto para desqualificar alguém. São “paus pra toda obra,” no prolóquio popular mais adequado.

Esta é uma das facetas da nossa Língua Portuguesa: idioma de origem românica, filha benquista do Lácio, a brindar-nos um horizonte de belas palavras. Peca, talvez, por não ser tão técnica e objetiva como o Inglês ou Alemão, por exemplo. Ganha, porém, em sonoridade e plasticidade só comparável a outras línguas de origem latina. Poucos são os privilegiados que a manejam com delicadeza e arte ao deixarem fluir frases grandiloquentes que ecoam como canção de ninar.

É o que acontece, por exemplo, com aquele preciosista incorrigível que, a propósito de comentários sobre eclipse, esnobou a perífrase vernacular: “na pretérita centúria, meu progenitor presenciou o acasalamento do Astro-Rei com a Rainha da Noite”, em vez de simplesmente dizer: “no século passado, meu avô viu o eclipse solar”.

Quando esse mesmo amante-complicador do óbvio e simples chega a um boteco e pede que lhe sirvam “uma solução aquosa de rubiácea”, em lugar do apreciado cafezinho. Se deseja haurir uma cervejinha, suplica “um fermentado gélido de Hordeum vulgare”.

O mesmo refinado e preciosista cidadão não poupa sequer nosso líquido universal — a água. Uma vez sedento, para pedir um simples gole de água, solicita um copo de “protóxido de hidrogênio”, o que nos remete às aulas de Química Inorgânica dos tempos estudantis.

Certa vez, envolvido em discussão que não lhe convinha, exatamente aqueles bate-bocas que não chegam a lugar algum, como diríamos: “conversa mole para boi dormir” ou “tertúlia plácida para levar bovídeo aos braços de Morfeu”, vociferou: “vamos parar com esse colóquio flácido para acalentar bovino”. E até mesmo para referir-se à batida frase “cada macaco no seu galho”, ele prefere o circunlóquio: “cada símio na ramificação arbórea que lhe compete”. Que chique, não é?!

Boi dormindo. Jão. 2021.
Outros, entrementes, à margem das belezas do nosso vernáculo, entretanto admiradores dos bons falantes, chegam a criar palavras, mergulham fundo em neologismos e deixam boquiaberto a quem flagrasse, por exemplo, Baiano e Sinhô simularem uma contenda.

— Sinhô, você não presta. Você não passa de um safado sub-relevapes.

— E você, Baiano? Você é um pé-inchado subsindiques, um pau-d’água-de-marca-maior, isto sim!

— Sabe de uma coisa: vamos parar com isso. Vamos deixar de muita renoclênia, porque o que somos mesmo é um bando de intratapes — finalizou o sempre magníloquo Baiano.

Bem cedo eles se foram. Adejaram céleres, num atro dia, para um mundo inconcebível e incognoscível, lugar, por certo, onde sua linguagem louçã e enigmática encontrará ouvidos que melhor os entenderão.

Baiano, depois de uma noitada etílica, afogou-se nas águas do Rio Corrente, em Santa Maria da Vitória, no rosicler da manhã. Enquanto Sinhô, sorumbático e inconsolável, apartado abruptamente do inseparável amigo, despediu do mundo — também afogado — no mesmo aziago dia, à tarde. E lá se foram os amigos indobeclíveis e sub-relevapes, vítimas da dipsomania.

Salvador do Mercado, folgazão e piadista contumaz, num piscar de olhos, fez verdadeira a máxima popular quando se refere à amizade sincera e despretensiosa:

— Isso é que são amigos! Até debaixo d’água!

Finalmente, somente para deleite, apreciemos o soneto por título “A uma deusa (O quelso)”, atribuído ao poeta maranhense Luís Lisboa, em que ele usa e abusa de neologismos e bestialógicos, quase sempre por força de rimas ou diversão mesmo:

Tu és o quelso do pental ganírio,
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijom sidério.

És o bartólio do bocal empírio
Que ruge e passa no festim sitério,
Em ticoteios de partano estírio,
Rompendo as gâmbias do hortomogenério.

Teus lindos olhos que têm barlacantes
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carce metálio,
De lúrias peles em que pulsa obálio
Em vertimbânceas do pental perônio.

Viram só! Inventar palavras não é privilégio apenas de Baiano e Sinhô. Gente letrada também gosta de falar difícil e muitas vezes nada dizem. Gente sabida também pode ser vaniloquente.


A propósito, os termos rebuscados utilizados nesta crônica, raramente ouvidos no falar cotidiano, foram a forma encontrada de deixá-la de acordo com as perífrases, sobretudo lembrar Baiano e Sinhô, e não derramar inutilmente palavras difíceis para demonstrar falsa erudição.

Referências:

CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 4. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ediouro, 1989. 180p. (vide soneto “A uma deusa ou O quelso”, de Luís Lisboa, p. 30).

COLLETI, Cesar. Poesia a uma deus. Jornal da Franca. Ano 6, n. 2137. Disponível em: <https://www.jornaldafranca.com.br/poesia-a-uma-deusa/>. Acesso em: 6 set. 2021.

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Ed. do Autor, 2009. 164p. (vide crônica Tertúlia plácida para acalentar bovídeo, p. 153).

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O fim do mundo já passou

Desenhava-se, naquela manhã de tempos idos, mais um rotineiro sábado de feira como muitos outros haviam sido: eu e Hermes, meu irmão, ali na sapataria, à espera de algum brejeiro para consertar, lustrar ou repregar calçados. Ou, ainda, fazer “cubação de terra” e ganhar uma grana extra para gastar nas matinês do Cine União, dos irmãos Rocha, Lolô e Rosi, nos circos comuns, circos de touradas ou nos parques de diversões muito comuns à época.

E “cubação de terra”?! Que troço é esse? Explico: cubação nada mais é senão o cálculo da área de um terreno, roçado ou plantado por trabalhadores rurais, que devem receber remuneração, em moeda corrente, proporcionalmente à quantidade de “tarefas” beneficiadas. Tarefa, por sua vez, é medida de área ainda muito utilizada no interior baiano.

Explicações à parte, os consertos que fazíamos eram bem aceitos e rendiam alguns trocados. Nossos cálculos, todavia, suscitavam descrença, pois a brejeirada não cria muito em nós e, vez por outra, voltava sorrateiramente para ter o aval do nosso pai. Além do mais, se feito por ele, o pagamento se resumia a um “Deus lhe pague”, mas comigo ou meu irmão, via-se no dever de “fazer um agrado”.

Novais Neto, Nélson Neves, Glécia e Tião Sapateiro. 1978
O dia sabático, portanto, transcorria normalmente. Eu já havia feito alguns consertos, repregado umas botinas e me preparava para ir à feira comer queca de Chiquinho Boca Aberta, talvez brevidade de Zelino Jega Véia, ginete, ximango e beber QSuco de groselha, garapa de cana ou a deliciosa gasosa, bebida preparada com bicarbonato de sódio. E e
is que, de supetão e espavoridos, surgem na porta da tenda três senhores. Dois, do meu conhecimento, eram Chico Bate-Pau e Péto, espécie de ajudante da Polícia Militar. O primeiro, primo da minha mãe, e o outro, a tiracolo deles, um velhinho por nome Antão, que também eu o conhecia de vista.

— Tião, Tião, o fim do mundo tá perto. Assunta o que assucedeu cum ovo dessa galinha. Quando vi, fiquei mei descalqueado. Mostra pra ele, Seu Antão — ordenou Chico Bate-Pau.

— Deixa de patacoada, Chico! Cê num tem o que fazer, não? Vai caçar o que fazer. Tá caçoando comigo, Chico? Tá fazendo-se de besta? Mas, xô ver essa geringonça aí, Seu Antão. Decá esse troço aí. Xô ver se num é cadelagem de algum capadócio trampolineiro.

Seu Antão apeou de uma égua descanelada, meio arisca, tirou do embornal uma pequena caixa de remédio amarrada com embira e, desta, com muito cuidado, um ovo envolvido em chumaços de algodão, que passou às mãos do meu pai:

— Taí, Seu Tião, me explique que milagre é esse ou nois tamo é campado. Tá parecendo coisa do fim do mundo, da besta-fera — desafiou o brejeiro.

Eu, que estava ali em pé a curiar tudo, pude ver que no ovo havia umas inscrições com letras invertidas verticalmente
 como se estivesse em frente a um espelho plano. Dentre elas, era possível claramente visualizar esta frase: “roma è sueD”. Confesso que aquilo, sem dúvida alguma, me deixou com a pulga atrás da orelha, porque também não entendi patavina de nada.

Meu pai, sem dar qualquer explicação antecipada, foi logo indagando:

— Seu Antão, o sinhô mora onde? É aqui por perto?

— Moro lá na ponta da rua, dispois da casa de João Fulosoro, dispois do Pingo d’Água, de junto da tapera de Chico Tutano e da capoeira de Zé Carretão. Tem até um pé de pau bem no eitão da casa, um pé de madeira-nova sombroso. Pru que, Seu Tião, ocê quer ir lá ver?

— O sinhô pode me mostrar o ninho dessa galinha, Seu Antão?

— Prefeitamente. Quer ir lá cumigo? Vambora agora, é nesturinha mermo, sem puxa-encoe!

E lá fomos nós. Um pouco à frente, meu pai e Seu Antão, calados. Chico Bate-Pau, Péto e eu, encambados atrás sem entender o porquê de o meu pai querer ver o ninho dessa tal galinha poedeira de ovo mensageiro do fim das eras, do outro mundo.

Quando chegamos à casa do velhinho Antão, como é de costume, ele nos ofereceu um cafezinho em copos esmaltados, que quase me pela a língua. Em seguida, nos levou ao quintal: um terreirinho bem simples, varrido, cercado de varas com casca de ovos nas pontas, algumas galinhas pedrês, um chiqueiro de porcos piaus, 
feito de achas de aroeira, um jirau com cebolinha, coentro e salsa. Em outro jirau, uma casinha com o ninho onde havia encontrado o misterioso ovo junto a outro de indez.

Gravura de pano de prato sem identificação de autoria.
Meu pai olhou direitinho o ninho galináceo, futucou ali, futucou acolá, empurrou páginas de jornais velhos para um canto, entortou a boca para um lado, entortou para o outro, franziu a testa, mirou o firmamento de azul intenso com olhos semicerrados, como a buscar inspiração divina, meneou a cabeça de forma suave e tentou explicar o que — supostamente — teria acontecido:

— Quando a galinha bota o ovo, Seu Antão, ele sai quente e molhado e encostou no jornal, e aí a tinta do jornal passou pro ovo. Eu acho que foi isso. Num entendo muito bem esse negócio de milagre, não, mas eu acho que foi isso que aconteceu. E foi por isso que apareceu no ovo “roma è sueD” em vez de “Deus é amor”, como deve tá
 no jornal. O senhor entendeu, Seu Antão?

Fotomontagem: Novais Neto. 2021.
Seu Antão, pelo visto, pela cara que fez, não se convenceu com as explicações dadas pelo desvendador de mistérios ovículos. Botou novamente — e com muito cuidado — o amuleto na caixinha, tirou uma embira da algibeira, amarrou novamente o pacote e o guardou. Agradeceu, formal e friamente, a meu pai. E nós, sem mais o que fazer, exalamos no mundo sem dá um pio. E ainda a crer em coisas do outro mundo.

Depois de tanto tempo, já que, naquela época, eu beirava doze, treze anos de idade, algumas coisas aconteceram: os bate-paus Chico e Péto viajaram para outra possível biodimensão. Seu Antão, que já era bem velhinho, corpo curvado, certamente não mais está entre os vivos.

E ovo? Do ovo nunca mais ouvi falar. E fim do mundo? O fim do mundo, este nosso mundão velho sem porteira, com se diz por aquelas bandas, que se cria não passar do ano 2000, já passou e muito. E não acabou! Também não se concretizou o assustador (e quase inevitável) Bug do Milênio, pesadelo dos cibernéticos, que ocorreria na meia-noite de 1999 para 2000, quando os computadores de todo o Planeta entrariam em pane. Nada disso aconteceu! Felizmente!

Referência:

NOVAIS NETO. Meu lugar é aqui no centenário de Santa Maria da Vitória. Salvador: Edição do autor, 2009. 164p., p. 161. (conto revisto).

Quem sou

“Matemática ultrarromântica“ na peça teatral portuguesa “Beremiz na Terra Plana“

Publicada no meu segundo livro, Ave Corrente (1991), a poesia  “ Matemática ultrarromântica ” , posteriormente, singrou mares e foi parar em...